domingo, 26 de junho de 2016

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Retorno ao conjunto de livros não publicados antes referido e tento seguir o amor como fio condutor. Muitas pessoas que me leem dizem que tenho no mínimo uma estranha conceção de amor. De cada livro volto a escolher apenas um texto.

*

Felizes para sempre

 

Casaram-se e foram felizes para sempre, o que só foi possível graças ao divórcio.

*

E vai um.

*

97 Ele gritou que a amava, mas ela não o ouviu. Quando fazia amor concentrava-se por completo e nada mais existia para ela a não ser o amor que fazia. Ele de novo afirmou que a amava, agora num sussurro, os corpos saciados estendidos lado a lado, mas ela ignorou-o. Se havia coisa que ela nunca fazia era falar de amor.

*

Procuro de novo, quase ao acaso.

*

Olho a mulher jovem e esbelta sentada junto a uma das saídas do café e ela sorri-me. Sorrio também e ela levanta-se e vem sentar-se à minha mesa.

Não sei o que dizer, mas também não interessa, porque ela se mantém em silêncio, sorrindo sempre.

Esfrego os olhos por um momento e quando olho de novo ela já não está ali, nem na minha mesa nem na mesa que antes ocupava.

Não me espanto nem me lamento, olho de novo para a mesa onde ela estava e de novo a imagino, jovem e esbelta, sorrindo para mim.

*

Continuo.

*

ARRITMIA

 

a minha mão na tua mão

os meus lábios nos teus lábios

o meu sexo no teu sexo

amamos sem nos amarmos

completamente surdos

ao bater dos nossos corações

completamente perdidos

na procura desesperada

do amor

*

Apetece-me já parar, mas procuro ainda um último texto.

*

[…]

 

“Gostaste da fotografia?”

“Gostei bastante. Vou usá-la. O artigo deve ser publicado amanhã. Depois envio-te. Sabes que ele é escritor?”

“Sabia que era um artista.”

“Um artista como tu?”

Nunca era ela que lhe telefonava, era sempre Henrique, no entanto ele achava que ela gostava dele, e continuava a insistir sem saber bem porquê, nem o que sentia por ela. Era uma mulher estranha, pensava Henrique, mas Henrique achava todas as mulheres estranhas, assim como todos os homens. E as piores são aquelas com nome de flor, costumava-lhe dizer, e Rosa sorria e chamava-lhe tolo. Já não eram crianças, na verdade tinham já ultrapassado os quarenta anos, tinham filhos e mantinham casamentos e empregos de que não gostavam por aí além, mas que estavam longe de detestar. Rosa fotografava, para si, como dizia, e era o modelo da maior parte das suas fotografias, acusavam-na de ser narcisista, de produzir fotografias ingénuas e sensaboronas.

“O que queres dizer com um artista como eu?”

“Sabes que se diz que só um maluco conhece outro maluco!”

Rosa sorriu. Já estavam a olhar para ela. Não podia atender o telefone na sala de trabalho que ficavam logo a olhar para ela.

“Ele é escritor, chama-se Ângelo Durão, ganhou um prémio importante com o seu primeiro romance e, agora que o romance foi publicado, exige que todos os exemplares sejam retirados do mercado.”

“Interessante. E em que é que o achas parecido comigo?”

Henrique riu. Ia a subir a Avenida onde ficava a sede do jornal onde trabalhava há vários anos. Gostava de telefonar-lhe quando ia a andar na rua, talvez porque ninguém o interrompesse nessa situação, talvez porque gostasse de andar e falar: às vezes até o fazia sozinho.

“Parece ser um homem determinado, este Ângelo Durão, mais preocupado em fazer a sua arte do que em divulgá-la. Disseram-me que não foi ele a enviar o romance a concurso, mas uma amiga, ou uma namorada; se assim não fosse nunca teria concorrido.”

“Começo a gostar dele, mas senti isso tudo quando tirei a fotografia, foi como fotografar-me a mim mesma.”

Rosa dizia sempre que se fotografava a si mesma porque era o único modelo que tinha à sua disposição. Era tímida, nunca quereria incomodar outra pessoa pedindo-lhe que posasse, e as suas fotografias exigiam uma certa imobilidade.

Henrique discordava, dizia que o motivo devia ser outro, ainda que não perdesse tempo a procurá-lo, parecia-lhe inútil. A força das fotografias de Rosa estava nessa exposição de si própria e numa intensa e ambígua intimidade que assim conseguia. Ela estava inteira nas suas fotografias, ou pelo menos parecia estar. O que Henrique não concordava é que ela se preocupasse tão pouco com mostrar o seu trabalho, que fotografasse praticamente só para si. Mas tinha já desistido.

“É maluco como tu.”

Ela riu e ele repetiu a frase.

“É maluco como tu!”

Havia tanto nela que não compreendia, pensou Henrique, e talvez por isso ela lhe interessasse tanto, tal como este Ângelo Durão.

“E como se chama o livro?”

“O livro? Qual o livro? Ah, o livro do Ângelo Durão. Uma pergunta desnecessária.”

            “O quê?”

            “Uma pergunta desnecessária, o livro chama-se Uma pergunta desnecessária.”

            “Ah! Um óptimo título. Já leste?”

            “Não, ainda não li, nem sei se vou ler, interessa-me mais o escritor do que o seu livro.”

            “Não sabes que a obra é sempre mais importante que o seu autor?”

            “Estás a ver, isso era o tipo de coisa que eu acho que o Ângelo Durão diria.”

            Rosa riu-se de novo. Henrique fazia-a rir, fazia-a sempre rir. Às vezes interrogava-se se não seria por isso que gostava tanto dele. E no entanto.

            “Tens o livro?”

            “Sim, tenho… Sabes o que podias fazer? Lias o livro e depois dizias-me alguma coisa. Olha, estou a chegar, depois falamos. Vou fazer chegar-te o livro o mais rápido possível. Adorei a fotografia.”

            Desligou o telefone e só depois murmurou: “Adoro-te.”

            Rosa sorria ainda, como se o ouvisse.

*

Este conjunto de textos fará algum sentido quanto a uma ideia de amor?

 

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