Retorno ao conjunto de livros não
publicados antes referido e tento seguir o amor como fio condutor. Muitas
pessoas que me leem dizem que tenho no mínimo uma estranha conceção de amor. De
cada livro volto a escolher apenas um texto.
*
Felizes para sempre
Casaram-se e foram felizes para
sempre, o que só foi possível graças ao divórcio.
*
E vai um.
*
97 Ele gritou que a amava, mas
ela não o ouviu. Quando fazia amor concentrava-se por completo e nada mais
existia para ela a não ser o amor que fazia. Ele de novo afirmou que a amava,
agora num sussurro, os corpos saciados estendidos lado a lado, mas ela
ignorou-o. Se havia coisa que ela nunca fazia era falar de amor.
*
Procuro de novo, quase ao acaso.
*
Olho a mulher
jovem e esbelta sentada junto a uma das saídas do café e ela sorri-me. Sorrio
também e ela levanta-se e vem sentar-se à minha mesa.
Não sei o que
dizer, mas também não interessa, porque ela se mantém em silêncio, sorrindo
sempre.
Esfrego os
olhos por um momento e quando olho de novo ela já não está ali, nem na minha
mesa nem na mesa que antes ocupava.
Não me
espanto nem me lamento, olho de novo para a mesa onde ela estava e de novo a
imagino, jovem e esbelta, sorrindo para mim.
*
Continuo.
*
ARRITMIA
a minha mão na tua mão
os meus lábios nos teus lábios
o meu sexo no teu sexo
amamos sem nos amarmos
completamente surdos
ao bater dos nossos corações
completamente perdidos
na procura desesperada
do amor
*
Apetece-me já parar, mas procuro ainda
um último texto.
*
[…]
“Gostaste da
fotografia?”
“Gostei
bastante. Vou usá-la. O artigo deve ser publicado amanhã. Depois envio-te.
Sabes que ele é escritor?”
“Sabia que era
um artista.”
“Um artista
como tu?”
Nunca era ela
que lhe telefonava, era sempre Henrique, no entanto ele achava que ela gostava
dele, e continuava a insistir sem saber bem porquê, nem o que sentia por ela.
Era uma mulher estranha, pensava Henrique, mas Henrique achava todas as
mulheres estranhas, assim como todos os homens. E as piores são aquelas com
nome de flor, costumava-lhe dizer, e Rosa sorria e chamava-lhe tolo. Já não
eram crianças, na verdade tinham já ultrapassado os quarenta anos, tinham
filhos e mantinham casamentos e empregos de que não gostavam por aí além, mas
que estavam longe de detestar. Rosa fotografava, para si, como dizia, e era o
modelo da maior parte das suas fotografias, acusavam-na de ser narcisista, de
produzir fotografias ingénuas e sensaboronas.
“O que queres
dizer com um artista como eu?”
“Sabes que se
diz que só um maluco conhece outro maluco!”
Rosa sorriu.
Já estavam a olhar para ela. Não podia atender o telefone na sala de trabalho
que ficavam logo a olhar para ela.
“Ele é
escritor, chama-se Ângelo Durão, ganhou um prémio importante com o seu primeiro
romance e, agora que o romance foi publicado, exige que todos os exemplares
sejam retirados do mercado.”
“Interessante.
E em que é que o achas parecido comigo?”
Henrique riu.
Ia a subir a Avenida onde ficava a sede do jornal onde trabalhava há vários
anos. Gostava de telefonar-lhe quando ia a andar na rua, talvez porque ninguém
o interrompesse nessa situação, talvez porque gostasse de andar e falar: às
vezes até o fazia sozinho.
“Parece ser um
homem determinado, este Ângelo Durão, mais preocupado em fazer a sua arte do
que em
divulgá-la. Disseram-me que não foi ele a enviar o romance a
concurso, mas uma amiga, ou uma namorada; se assim não fosse nunca teria
concorrido.”
“Começo a
gostar dele, mas senti isso tudo quando tirei a fotografia, foi como
fotografar-me a mim mesma.”
Rosa dizia
sempre que se fotografava a si mesma porque era o único modelo que tinha à sua
disposição. Era tímida, nunca quereria incomodar outra pessoa pedindo-lhe que
posasse, e as suas fotografias exigiam uma certa imobilidade.
Henrique
discordava, dizia que o motivo devia ser outro, ainda que não perdesse tempo a
procurá-lo, parecia-lhe inútil. A força das fotografias de Rosa estava nessa
exposição de si própria e numa intensa e ambígua intimidade que assim
conseguia. Ela estava inteira nas suas fotografias, ou pelo menos parecia
estar. O que Henrique não concordava é que ela se preocupasse tão pouco com
mostrar o seu trabalho, que fotografasse praticamente só para si. Mas tinha já
desistido.
“É maluco como
tu.”
Ela riu e ele
repetiu a frase.
“É maluco como
tu!”
Havia tanto
nela que não compreendia, pensou Henrique, e talvez por isso ela lhe
interessasse tanto, tal como este Ângelo Durão.
“E como se
chama o livro?”
“O livro? Qual
o livro? Ah, o livro do Ângelo Durão. Uma pergunta desnecessária.”
“O
quê?”
“Uma
pergunta desnecessária, o livro chama-se Uma pergunta desnecessária.”
“Ah!
Um óptimo título. Já leste?”
“Não,
ainda não li, nem sei se vou ler, interessa-me mais o escritor do que o seu
livro.”
“Não
sabes que a obra é sempre mais importante que o seu autor?”
“Estás
a ver, isso era o tipo de coisa que eu acho que o Ângelo Durão diria.”
Rosa
riu-se de novo. Henrique fazia-a rir, fazia-a sempre rir. Às vezes
interrogava-se se não seria por isso que gostava tanto dele. E no entanto.
“Tens
o livro?”
“Sim,
tenho… Sabes o que podias fazer? Lias o livro e depois dizias-me alguma coisa.
Olha, estou a chegar, depois falamos. Vou fazer chegar-te o livro o mais rápido
possível. Adorei a fotografia.”
Desligou
o telefone e só depois murmurou: “Adoro-te.”
Rosa
sorria ainda, como se o ouvisse.
*
Este conjunto de textos fará algum
sentido quanto a uma ideia de amor?
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