sábado, 25 de junho de 2016

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De entre tudo o que escrevi e não publiquei (em muitos casos nem mesmo em blogues, meio de edição que uso com frequência) percorro alguns livros (ou projetos de livros) a que voltei várias vezes e que arrumei finalmente num único ficheiro, no que foi uma forma de organizar o que escrevi para poder seguir em frente e continuar a escrever.

Constato que a minha produção literária avançou nos últimos anos entre a prosa e a poesia, apresentando-se ao mesmo tempo cada vez mais fragmentária e eclética. E isso é muito mais visível no conjunto de livros não publicados, desde logo porque tenho publicado muito pouco.

É difícil datar estes livros porque a eles voltei muitas vezes, alterando-os, juntando-os, dando-lhes novos nomes e estruturas. Mas não será difícil viajar neles de forma cronológica ou quase. Como a reflexão sobre a escrita é um dos meus temas recorrentes, sobretudo aqui, esse será o fio condutor.

Começo por uma versão alargada de um livro publicado, com dois novos livros, o que faz do conjunto um novo livro. Procuro então um texto (decidi mesmo agora que de cada livro apenas escolherei um texto) e começo a viagem.

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Um belo dia, decidiu escrever a história da sua vida. Sentou-se em frente ao monitor, olhou por um momento o dia lá fora, e começou a escrever tudo o que recordava, por ordem cronológica, desde o nascimento, primeiro acontecimento inscrito no rol, sem prejuízo de um breve mas necessário recuo genealógico. Nos cinco anos seguintes, reconstituiu exaustiva e minuciosamente a sua existência até ao dia em que começara a descrevê-la. Quando terminou, leu, duas vezes, as seiscentas e trinta e quatro páginas impressas a dois espaços, e achou o texto incompleto, os cinco anos que levara a escrevê-lo não estavam lá e, o que era pior, não terminava verdadeiramente, não tinha fim. Saiu de casa e deu um longo passeio pensativo ao longo da via rápida, até que foi assaltado pela ideia de que os últimos cinco anos eram o próprio livro, o livro incluía esse tempo de escrita em si mesmo, a descrição da sua vida estava completa, até aquele momento. Sorriu e precipitou-se para o fim, servido ali mesmo na faixa de rodagem por um veículo longo como a morte.

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Escolhi este texto, hesito, mantenho-o. Textos como este, que eu considerava pequenas histórias, podem facilmente ser classificados, e foram-no, como poemas, em prosa, pela sua concisão e ritmo. Avanço e abro outro livro.

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A morte não é desculpa

Escrevo-te. Telefono-te. Nunca respondes. Sei que estás morto, mas a morte não é desculpa.

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De um livro com o subtítulo “ a ficção ao microscópio”, que contém três livros retirei este texto que fala da morte e não da escrita, continuando o primeiro texto apresentado mas afastando-me do meu propósito inicial de escolher textos que falassem do ato de escrever. Microficção, classifico, com o que de ambíguo tem a expressão. Continuo.

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Perguntavas-me o que faz de alguém um escritor. Bastará ser publicado? É preciso ser reconhecido pela crítica? Vender muitos livros?

Eu dizia-te que não era nada disso, que era algo pessoal, íntimo, mas a verdade é que eu ainda não tinha respondido a essa pergunta.

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Texto breve, fragmentário, abre uma novela em que se mistura prosa e poesia e que usa e abusa do fragmento. Procuro agora num livro de poesia, ou de prosa/poesia.

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POEMA UM DIA

 

a minha história é uma história

de fracassos

ostento-os todos um a um

alinhados no meu peito

aberto

eles são a prova provada

da minha persistência

da minha coragem

da minha teimosia

ser herói não é ser vencedor

ter sempre os olhos postos

na vitória

ser herói é não aceitar

a derrota

sabendo que nunca

se vencerá

termos os olhos postos

em nós

e vermos os outros

termos os olhos postos

nos  outros

e vermo-nos a nós

ser herói é apenas

sermos homens e mulheres

simples

deuses caídos em desgraça

e aceitarmos

o nosso trágico destino

com um sorriso pleno

de revolta

 

[um poema escrito em poucos minutos e em poucos minutos reescrito foi vivido muitos anos, e um dia arrancado de repente ao todo indistinto a que chamamos memória. por isso os poemas dizem tanto mais quanto mais calam]

*

Não me detenho e visito outro livro, sem me interrogar se contém prosa ou poesia.

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Está tudo no olhar

 

Está tudo no olhar. Até os cegos olham. Está tudo no ver. Até nas trevas nos conseguimos ver. No princípio é sempre o olhar, nada mais do que o olhar, o ver vem depois, vem sempre depois, depois do olhar e antes do fazer, ou não fazer. O poema pode ser cego mas tem sempre os teus olhos. O poema pode ser obscuro mas nunca é invisível. Está tudo no olhar, não estás a ver? Estás? Então olha!

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Fico a pensar se me detenho aqui. Já mostrei o que queria mostrar-te e julgo que poderás concordar com as minhas declarações iniciais. Não quero maçar-te, sei que tens mais que fazer, mas vou terminar com mais um fragmento, de uma outra novela, a mais nova.

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Escrever é viver entre parênteses

 

Terminada a primeira versão, esforça-se agora em limar as arestas, ou afiá-las, consoante os casos e a perspetiva. Esforça-se sobretudo para ouvir a história, para deixar que a história se conte, como a ideia de que a pedra contém em si a escultura que o artista revela. Faz pequenos acertos, pequenos cortes, esforça-se por encontrar um equilíbrio, esforça-se por revelar a verdade. A maior parte do tempo fica imóvel, em silêncio, escutando, escrevendo. Nunca afirmaria que escrever é viver entre parênteses. Escrever é viver, apenas isso, nada mais.

*

Até à próxima.

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