De entre tudo o que
escrevi e não publiquei (em muitos casos nem mesmo em blogues, meio de edição
que uso com frequência) percorro alguns livros (ou projetos de livros) a que
voltei várias vezes e que arrumei finalmente num único ficheiro, no que foi uma
forma de organizar o que escrevi para poder seguir em frente e continuar a
escrever.
Constato que a
minha produção literária avançou nos últimos anos entre a prosa e a poesia,
apresentando-se ao mesmo tempo cada vez mais fragmentária e eclética. E isso é
muito mais visível no conjunto de livros não publicados, desde logo porque
tenho publicado muito pouco.
É difícil datar
estes livros porque a eles voltei muitas vezes, alterando-os, juntando-os,
dando-lhes novos nomes e estruturas. Mas não será difícil viajar neles de forma
cronológica ou quase. Como a reflexão sobre a escrita é um dos meus temas
recorrentes, sobretudo aqui, esse será o fio condutor.
Começo por uma
versão alargada de um livro publicado, com dois novos livros, o que faz do
conjunto um novo livro. Procuro então um texto (decidi mesmo agora que de cada
livro apenas escolherei um texto) e começo a viagem.
*
Um belo dia,
decidiu escrever a história da sua vida. Sentou-se em frente ao monitor, olhou
por um momento o dia lá fora, e começou a escrever tudo o que recordava, por
ordem cronológica, desde o nascimento, primeiro acontecimento inscrito no rol,
sem prejuízo de um breve mas necessário recuo genealógico. Nos cinco anos
seguintes, reconstituiu exaustiva e minuciosamente a sua existência até ao dia
em que começara a descrevê-la. Quando terminou, leu, duas vezes, as seiscentas
e trinta e quatro páginas impressas a dois espaços, e achou o texto incompleto,
os cinco anos que levara a escrevê-lo não estavam lá e, o que era pior, não
terminava verdadeiramente, não tinha fim. Saiu de casa e deu um longo passeio
pensativo ao longo da via rápida, até que foi assaltado pela ideia de que os
últimos cinco anos eram o próprio livro, o livro incluía esse tempo de escrita
em si mesmo, a descrição da sua vida estava completa, até aquele momento.
Sorriu e precipitou-se para o fim, servido ali mesmo na faixa de rodagem por um
veículo longo como a morte.
*
Escolhi este texto,
hesito, mantenho-o. Textos como este, que eu considerava pequenas histórias,
podem facilmente ser classificados, e foram-no, como poemas, em prosa, pela sua
concisão e ritmo. Avanço e abro outro livro.
*
A morte não é
desculpa
Escrevo-te.
Telefono-te. Nunca respondes. Sei que estás morto, mas a morte não é desculpa.
*
De um livro com
o subtítulo “ a ficção ao microscópio”, que contém três livros retirei este texto
que fala da morte e não da escrita, continuando o primeiro texto apresentado mas
afastando-me do meu propósito inicial de escolher textos que falassem do ato de
escrever. Microficção, classifico, com o que de ambíguo tem a expressão.
Continuo.
*
Perguntavas-me o
que faz de alguém um escritor. Bastará ser publicado? É preciso ser reconhecido
pela crítica? Vender muitos livros?
Eu dizia-te que
não era nada disso, que era algo pessoal, íntimo, mas a verdade é que eu ainda
não tinha respondido a essa pergunta.
*
Texto breve, fragmentário,
abre uma novela em que se mistura prosa e poesia e que usa e abusa do
fragmento. Procuro agora num livro de poesia, ou de prosa/poesia.
*
POEMA UM DIA
a minha história é uma história
de fracassos
ostento-os todos um a um
alinhados no meu peito
aberto
eles são a prova provada
da minha persistência
da minha coragem
da minha teimosia
ser herói não é ser vencedor
ter sempre os olhos postos
na vitória
ser herói é não aceitar
a derrota
sabendo que nunca
se vencerá
termos os olhos postos
em nós
e vermos os outros
termos os olhos postos
nos outros
e vermo-nos a nós
ser herói é apenas
sermos homens e mulheres
simples
deuses caídos em desgraça
e aceitarmos
o nosso trágico destino
com um sorriso pleno
de revolta
[um poema escrito em
poucos minutos e em poucos minutos reescrito foi vivido muitos anos, e um
dia arrancado de repente ao todo indistinto a que chamamos memória. por isso os
poemas dizem tanto mais quanto mais calam]
*
Não me detenho e
visito outro livro, sem me interrogar se contém prosa ou poesia.
*
Está tudo no olhar
Está tudo no olhar. Até os cegos olham. Está tudo no ver. Até nas trevas
nos conseguimos ver. No princípio é sempre o olhar, nada mais do que o olhar, o
ver vem depois, vem sempre depois, depois do olhar e antes do fazer, ou não
fazer. O poema pode ser cego mas tem sempre os teus olhos. O poema pode ser
obscuro mas nunca é invisível. Está tudo no olhar, não estás a ver? Estás?
Então olha!
*
Fico a pensar se
me detenho aqui. Já mostrei o que queria mostrar-te e julgo que poderás
concordar com as minhas declarações iniciais. Não quero maçar-te, sei que tens
mais que fazer, mas vou terminar com mais um fragmento, de uma outra novela, a
mais nova.
*
Escrever é viver entre parênteses
Terminada a primeira versão, esforça-se agora em limar as arestas, ou
afiá-las, consoante os casos e a perspetiva. Esforça-se sobretudo para ouvir a
história, para deixar que a história se conte, como a ideia de que a pedra
contém em si a escultura que o artista revela. Faz pequenos acertos, pequenos
cortes, esforça-se por encontrar um equilíbrio, esforça-se por revelar a
verdade. A maior parte do tempo fica imóvel, em silêncio, escutando,
escrevendo. Nunca afirmaria que escrever é viver entre parênteses. Escrever é
viver, apenas isso, nada mais.
*
Até à próxima.
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