sábado, 18 de junho de 2016

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Digo que não sou poeta mas acredito que a minha escrita atual é, muitas vezes, mesmo quando não se apresenta como poema, ainda que em prosa, uma escrita poética. A verdade é que não estou certo que tenha encontrado uma voz na poesia, ao contrário da ficção, onde estou quase certo ter uma voz própria. E escrevo poemas, sim, só não os levo muito a sério.

 

TRÍPTICO

 

1.

Aprisionado no movimento convulsivo

das circunstâncias,

o pintor liberta-se em puros instantes

de eternidade.

Não procura um sentido, é ele próprio

o sentido, único, proibido, aberto

a todas as especulações.

A mão que sangra, a mão que vence,

é a mesma mão que pinta,

mão negra, nostálgica,

mão que não lhe pertence,

mão que sente o que eu agora sinto.

 

2.

O êxtase do pintor assemelha-se

ao do futebolista:

movimenta-se como se dançasse,

procurando a glória do momento;

mas enquanto o pintor o faz sozinho e em silêncio,

o futebolista tem sempre um público barulhento

que celebra os seus fracassos e sucessos,

fintando com ele, caindo com ele,

chutando com ele, marcando e

celebrando os seus golos.

O pintor é uma ação

que procura um resultado,

o futebolista é ele próprio

ação e resultado.

Juntar o improvável, conceber e ser concebido,

ser o caçador e a sua presa, essa é a forma

do pintor pensar e agir e criar.

Não estranhem assim que o esboço de um jogador de futebol,

os braços erguidos em triunfo, termine de repente

numa opulenta cauda de sereia.

Não se admirem que a sua pintura

não se contenha nas superfícies em que se oferece

ao olhar

e se revele afinal na nudez exposta das nossas almas.

 

3.

Executados os últimos retoques

o pintor dedica-se ainda

a uma terna e cuidadosa

limpeza final da obra,

bem sabendo que tal

tarefa é completamente

inútil:

toda a arte é um silêncio

sujo.

 

[de um conjunto de poemas com o titulo:  O PINTOR E O POETA ENCONTRAM-SE NO BRANCO DA FOLHA]

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