Digo que não
sou poeta mas acredito que a minha escrita atual é, muitas vezes, mesmo quando
não se apresenta como poema, ainda que em prosa, uma escrita poética. A
verdade é que não estou certo que tenha encontrado uma voz na poesia, ao contrário
da ficção, onde estou quase certo ter uma voz própria. E escrevo poemas, sim, só
não os levo muito a sério.
TRÍPTICO
1.
Aprisionado no movimento convulsivo
das circunstâncias,
o pintor liberta-se em puros instantes
de eternidade.
Não procura um sentido, é ele próprio
o sentido, único, proibido, aberto
a todas as especulações.
A mão que sangra, a mão que vence,
é a mesma mão que pinta,
mão negra, nostálgica,
mão que não lhe pertence,
mão que sente o que eu agora sinto.
2.
O êxtase do pintor assemelha-se
ao do futebolista:
movimenta-se como se dançasse,
procurando a glória do momento;
mas enquanto o pintor o faz sozinho e em silêncio,
o futebolista tem sempre um público barulhento
que celebra os seus fracassos e sucessos,
fintando com ele, caindo com ele,
chutando com ele, marcando e
celebrando os seus golos.
O pintor é uma ação
que procura um resultado,
o futebolista é ele próprio
ação e resultado.
Juntar o improvável, conceber e ser concebido,
ser o caçador e a sua presa, essa é a forma
do pintor pensar e agir e criar.
Não estranhem assim que o esboço de um jogador de futebol,
os braços erguidos em triunfo, termine de repente
numa opulenta cauda de sereia.
Não se admirem que a sua pintura
não se contenha nas superfícies em que se oferece
ao olhar
e se revele afinal na nudez exposta das nossas almas.
3.
Executados os últimos retoques
o pintor dedica-se ainda
a uma terna e cuidadosa
limpeza final da obra,
bem sabendo que tal
tarefa é completamente
inútil:
toda a arte é um silêncio
sujo.
[de um conjunto de poemas com o
titulo: O PINTOR E O POETA ENCONTRAM-SE NO BRANCO DA FOLHA]
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