quarta-feira, 15 de junho de 2016

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Fizeram-me muitas perguntas interessantes para as quais não tenho respostas claras. O contexto foi a apresentação do livro Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido. Falam-me de interioridade da escrita, de forma poética, interrogam-me sobre o processo de escrita, sobre verdade e imaginação. Hesito. Escrevo de forma diferente consoante o que escrevo, ou seja, uso formas diferentes consoante o que quero dizer. Uma característica comum à minha escrita hoje, talvez seja a de usar sempre o fragmento, qualquer que seja a forma. De uma novela quase pronta a ser publicada escolho e copio um fragmento que pode ainda conter gralhas.

 
 
 
Aquela coisa dos cravos

 
 

Pararam antes de chegar ao bairro porque ele queria aproximar-se progressivamente, vê-lo do geral para o particular, como ele próprio disse. “Os trabalhos são à escala do bairro, é preciso perceber o bairro no seu conjunto para poder realmente compreender as diversas obras na sua dimensão e no seu diálogo umas com as outras e com o meio envolvente”, diz Nuno Lobo a Artur Falcão. “É um projecto muito interessante”, continua Nuno, “e foi desenvolvido em parceria pela Câmara Municipal e por uma associação local. É um exemplo a seguir, sem dúvida, muito interessante e promissor.” Continuaram a andar. Nuno olhava para a esquerda e para a direita, parava, retomava a marcha, parava de novo. Artur ia atrás dele, tentando acompanhar-lhe a marcha e o olhar. Nuno estava ali para fotografar, era um trabalho, porém a máquina fotográfica com a enorme objectiva continuava encostada ao seu peito e ele parecia ter-se esquecido dela. Entraram no bairro, percorreram ao acaso as suas ruas, cruzaram-se com muitos negros e ciganos.

Em Julho de 2008 aquele mesmo bairro fora palco de violentos confrontos entre as comunidades, africana e cigana, que ali habitam. Os murais que cobrem agora o bairro chegaram depois, fazendo os edifícios falarem de muito mais do que miséria e resignação.

Nuno regressou ao ponto de partida, frenético, olha ora para um ora para outro mural, aproxima-se, afasta-se, fecha um olho, fecha outro, murmura, ignora por completo Artur, e este ignora-o também. Nuno tinha-lhe dito que podia ir com ele, mas que não esperasse que lhe desse muita atenção e, sobretudo, que não o interrompesse enquanto trabalhasse. Nuno pede a Artur que espere ali com o material e regressa ao interior do bairro.

Então isto é que é fotografar, pensa Artur e sorri. Se perguntasse a Nuno o que estava a fazer, de certeza que ele lhe responderia, com surpresa, que estava a fotografar. E quando ele lhe fizesse notar que não estava a tirar fotografias, Nuno responderia, num tom cortês mas frio, que para tirar fotografias primeiro é preciso pensar e decidir que fotografias se quer tirar. Depois é fácil, acrescentaria com um sorriso irónico, é só tirar as fotografias. Esta é a parte mais fácil, sublinharia, se não percebes isto é porque não percebes nada de fotografia.

Artur ficou a olhar um enorme mural que cobria quase por inteiro a lateral de um dos vários prédios de cinco andares que compõem o bairro, todos eles pintados de um enjoativo amarelo-torrado. Nuno desaparecera da vista e ele observava com atenção o mural que reunia quatro rostos de dois andares de altura cada um. Reconheceu com facilidade um Bob Marley sorridente e um Che Guevara circunspecto, mas estava com dificuldades em identificar os outros dois rostos. Um era um militar, o que era óbvio, pelo boné que ostentava, um rosto que lhe parecia familiar, e o outro era um negro sorridente como um boné com a pala para trás. Um negro e um branco na fila de cima, um branco e um negro na fila de baixo. Ambos os negros sorriem, os brancos estão circunspectos, o militar parece quase zangado.

Nuno regressou e encontrou Artur a olhar o mural com um ar intrigado. Colocou-se ao seu lado e ficou também a olhar.

- Podia chamar-se os quatro magníficos, não achas? - perguntou Nuno.

- Podia até concordar, mas só reconheço os dois de cima, ainda que o do lado esquerdo, em baixo, me pareça bastante familiar.

Nuno ri á gargalhada e parece mais calmo do que antes.

- Que falta de cultura – diz sem deixar de rir, quase se engasgando. – Este mural é da autoria de Mendivan Blackboy, também conhecido como Ivanildo Mendes, um writer da Portela. – diz com um ar de entendido que usa com frequência quando quer surpreender e impressionar os amigos. – Em cima, lado a lado, estão o Bob Marley e o Che Guevara, como deves ter percebido. Em baixo, e vou começar pelo lado esquerdo, está um dos maiores rappers de todos os tempos, um verdadeiro ícone, assassinado em 1996.

Aqui chegado Nuno fez uma pausa e olhou para Artur, como que á espera que ele dissesse alguma coisa.

- És mesmo um daqueles gajos da televisão – disse Artur – que só parecem inteligentes quando estão a ler o teleponto. - Decoraste todo o conteúdo das notas que te deram, não foi, grande parvalhão?

Nuno olhou para Artur, divertido, parecendo disposto a esticar o momento ao máximo.

- Nem parece teu, então tu não reconheces o rosto da direita. Então não se vê logo que é um capitão de Abril?

- Porra, um capitão de Abril? – interrompeu Artur sem deixar de olhar para o mural. – Mas o que é isso?

- O 25 de Abril, a revolução, 74!

- O quê? – respondeu Artur quase a desmanchar-se de riso.

- Caralho, Artur, aquela coisa dos cravos, estás a ver ó pazinho! – e riem os dois à gargalhada, até que Artur fica muito sério, o rosto contraído num esgar.

- Porra, foda-se, é o cabrão do Salgueiro Maia!

Riem-se de novo e ficam a olhar o mural em silêncio.

Nuno arma o tripé e prepara-se para começar a tirar as fotografias que imaginou. É o que faz na meia hora seguinte, sempre frenético, de um lado para o outro, ignorando Artur. Esqueceu-se de acrescentar, o que fará mais tarde, que o Salgueiro Maia foi uma proposta da organização ao autor, para substituir Amílcar Cabral, dada a exigência de não serem incluídas figuras partidárias.

 

 

 

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