Fizeram-me muitas
perguntas interessantes para as quais não tenho respostas claras. O contexto foi
a apresentação do livro Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um
sentido. Falam-me de interioridade da escrita, de forma poética, interrogam-me
sobre o processo de escrita, sobre verdade e imaginação. Hesito. Escrevo de
forma diferente consoante o que escrevo, ou seja, uso formas diferentes
consoante o que quero dizer. Uma característica comum à minha escrita hoje, talvez seja a de usar sempre o
fragmento, qualquer que seja a forma. De uma novela quase pronta a ser publicada escolho e copio um fragmento que pode ainda conter gralhas.
Aquela coisa dos cravos
Pararam antes
de chegar ao bairro porque ele queria aproximar-se progressivamente, vê-lo do
geral para o particular, como ele próprio disse. “Os trabalhos são à escala do
bairro, é preciso perceber o bairro no seu conjunto para poder realmente
compreender as diversas obras na sua dimensão e no seu diálogo umas com as
outras e com o meio envolvente”, diz Nuno Lobo a Artur Falcão. “É um projecto
muito interessante”, continua Nuno, “e foi desenvolvido em parceria pela Câmara
Municipal e por uma associação local. É um exemplo a seguir, sem dúvida, muito
interessante e promissor.” Continuaram a andar. Nuno olhava para a esquerda e
para a direita, parava, retomava a marcha, parava de novo. Artur ia atrás dele,
tentando acompanhar-lhe a marcha e o olhar. Nuno estava ali para fotografar,
era um trabalho, porém a máquina fotográfica com a enorme objectiva continuava
encostada ao seu peito e ele parecia ter-se esquecido dela. Entraram no bairro,
percorreram ao acaso as suas ruas, cruzaram-se com muitos negros e ciganos.
Em Julho de
2008 aquele mesmo bairro fora palco de violentos confrontos entre as
comunidades, africana e cigana, que ali habitam. Os murais que cobrem agora o
bairro chegaram depois, fazendo os edifícios falarem de muito mais do que
miséria e resignação.
Nuno
regressou ao ponto de partida, frenético, olha ora para um ora para outro
mural, aproxima-se, afasta-se, fecha um olho, fecha outro, murmura, ignora por
completo Artur, e este ignora-o também. Nuno tinha-lhe dito que podia ir com
ele, mas que não esperasse que lhe desse muita atenção e, sobretudo, que não o
interrompesse enquanto trabalhasse. Nuno pede a Artur que espere ali com o
material e regressa ao interior do bairro.
Então isto é
que é fotografar, pensa Artur e sorri. Se perguntasse a Nuno o que estava a
fazer, de certeza que ele lhe responderia, com surpresa, que estava a
fotografar. E quando ele lhe fizesse notar que não estava a tirar fotografias, Nuno
responderia, num tom cortês mas frio, que para tirar fotografias primeiro é
preciso pensar e decidir que fotografias se quer tirar. Depois é fácil,
acrescentaria com um sorriso irónico, é só tirar as fotografias. Esta é a parte
mais fácil, sublinharia, se não percebes isto é porque não percebes nada de
fotografia.
Artur ficou a
olhar um enorme mural que cobria quase por inteiro a lateral de um dos vários
prédios de cinco andares que compõem o bairro, todos eles pintados de um enjoativo
amarelo-torrado. Nuno desaparecera da vista e ele observava com atenção o mural
que reunia quatro rostos de dois andares de altura cada um. Reconheceu com
facilidade um Bob Marley sorridente e um Che Guevara circunspecto, mas estava
com dificuldades em identificar os outros dois rostos. Um era um militar, o que
era óbvio, pelo boné que ostentava, um rosto que lhe parecia familiar, e o
outro era um negro sorridente como um boné com a pala para trás. Um negro e um
branco na fila de cima, um branco e um negro na fila de baixo. Ambos os negros
sorriem, os brancos estão circunspectos, o militar parece quase zangado.
Nuno
regressou e encontrou Artur a olhar o mural com um ar intrigado. Colocou-se ao
seu lado e ficou também a olhar.
- Podia
chamar-se os quatro magníficos, não achas? - perguntou Nuno.
- Podia até
concordar, mas só reconheço os dois de cima, ainda que o do lado esquerdo, em
baixo, me pareça bastante familiar.
Nuno ri á
gargalhada e parece mais calmo do que antes.
- Que falta
de cultura – diz sem deixar de rir, quase se engasgando. – Este mural é da
autoria de Mendivan Blackboy, também conhecido como Ivanildo Mendes, um writer
da Portela. – diz com um ar de entendido que usa com frequência quando quer
surpreender e impressionar os amigos. – Em cima, lado a lado, estão o Bob
Marley e o Che Guevara, como deves ter percebido. Em baixo, e vou começar pelo
lado esquerdo, está um dos maiores rappers de todos os tempos, um verdadeiro
ícone, assassinado em 1996.
Aqui chegado
Nuno fez uma pausa e olhou para Artur, como que á espera que ele dissesse
alguma coisa.
- És mesmo um
daqueles gajos da televisão – disse Artur – que só parecem inteligentes quando
estão a ler o teleponto. - Decoraste todo o conteúdo das notas que te deram,
não foi, grande parvalhão?
Nuno olhou
para Artur, divertido, parecendo disposto a esticar o momento ao máximo.
- Nem parece
teu, então tu não reconheces o rosto da direita. Então não se vê logo que é um
capitão de Abril?
- Porra, um
capitão de Abril? – interrompeu Artur sem deixar de olhar para o mural. – Mas o
que é isso?
- O 25 de
Abril, a revolução, 74!
- O quê? –
respondeu Artur quase a desmanchar-se de riso.
- Caralho,
Artur, aquela coisa dos cravos, estás a ver ó pazinho! – e riem os dois à
gargalhada, até que Artur fica muito sério, o rosto contraído num esgar.
- Porra,
foda-se, é o cabrão do Salgueiro Maia!
Riem-se de
novo e ficam a olhar o mural em silêncio.
Nuno arma o
tripé e prepara-se para começar a tirar as fotografias que imaginou. É o que
faz na meia hora seguinte, sempre frenético, de um lado para o outro, ignorando Artur.
Esqueceu-se de acrescentar, o que fará mais tarde, que o Salgueiro Maia foi uma
proposta da organização ao autor, para substituir Amílcar Cabral, dada a
exigência de não serem incluídas figuras partidárias.
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