Diário mais que improvável

 
(o encontro entre alguém que escreve e um algo que se escreve)

1. Tudo começa na página em branco. Tudo começa quando a escrita invade a página em branco, quando a escrita povoa a página com hesitantes porém determinados começos. E as perguntas começam a surgir. Quem escreve? O que se escreve? A primeira personagem de uma obra literária é sempre o seu autor, ou será que existe escrita sem autor? Pode o ato de escrever ser automático quando existe alguém que escreve? É claro que também existe algo que se escreve. O texto literário é o encontro entre alguém que escreve e um algo que se escreve. O processo, sim, o processo é uma outra história.


2. Uma palavra à frente da outra, é assim que se escreve, é assim que se contam todas as histórias. É assim que escreve quem escreve, é assim que se escreve esse algo que se escreve. Parece fácil e é fácil; parece difícil e é difícil. Com as palavras nada é fácil e no entanto nada é verdadeiramente difícil, porque basta colocar uma palavra à frente da outra e esperar que algo aconteça, esperar que algo se escreva. Mesmo quando se responde a um apelo, a uma urgência, escrever é sempre partir à aventura, é sempre estar aberto a todas as possibilidades. Como se escreve? Escreve-se, escrevendo! Escreve-se colocando uma palavra à frente da outra. É pouco? Talvez, todavia é um pouco que é muito. Se queres escrever, escreve! Se precisas de escrever, escreve! Só escrevendo despertarás esse algo que espera ser escrito, esse algo que espera escrever-se.


3 Existe um algo que se escreve e existo eu que escrevo, mas se sou eu que escrevo, serei eu sempre aquele que se escreve? Quando escrevo sou vários, porque sou sempre vários e também porque várias são as personagens que se dizem quando escrevo. O autor é sempre personagem e, mesmo quando é personagem muda, o autor nunca está calado. O silêncio do autor fala sempre tão alto quanto a sua voz.


4 O escritor está sentado à frente do ecrã de computador e percute o teclado com dois dedos num ritmo irregular. Tenta despertar esse algo que espera ser escrito e que ele não sabe muito bem o que é. Para de escrever, baixa a cabeça, olha o texto por cima dos óculos, passeia os dedos pelas teclas e de novo se detém, hesitante mas determinado. Espera e de novo recomeça, olhando-se no espelho que a escrita levanta à sua frente. Interroga-se sobre o processo, interroga-se sobre como se escreve. Apenas isso, nada mais. Escreve uma palavra à frente da outra, volta atrás, apaga, acrescenta, apenas isso, nada mais. Espera. Espera. Espera e de novo recomeça.


5 No princípio é apenas uma frase sem contexto, uma insistente sensação indefinida, uma interrogação atrevida que exige formulação. É preciso seguir, não prolongar a espera e partir atrás de algo que não sabe o que é. Pode ser uma melodia, uma pequena dissonância ou uma indistinta perplexidade.
Porque que é que as pessoas se encontram e se agrupam quase sem se conhecerem? O que têm em comum aquele homem e aquela mulher que se abrigaram da chuva numa estreita portada? Será que foi por acaso ou existirá uma qualquer explicação mais ou menos lógica ainda que mais ou menos improvável. Teriam de se encontrar?
Se o autor quiser escrever uma história de amor eles terão de se encontrar ou pelo menos de serem referidos um ao outro. Pode até ser uma história de desencontro.
Imaginem que aquele homem e aquela mulher são perfeitos um para o outro, no tempo e espaço daquele encontro que nunca se realizará porque ele ou ela encontrarão um pretexto para desencontrarem. A chuva abrandou, quase não chove, diz ele, e sai quase a correr. Estou tão perto de casa, diz ela, mais vale dar uma corrida até lá antes que comece a chover mais, e sai determinada. Seja como for, a verdade é que nunca se encontraram, sabe-se lá porquê.


6 A escrita não me oferece respostas sobre quem sou, a escrita abre-me caminhos para que eu possa interrogar-me quem sou; caminhos estreitos em que me aventuro, perdendo-me e achando-me uma e outra vez. Talvez não me seja possível ser quem sou, mas tenho de tentar sê-lo.
Desconhecia-se por completo, que o mesmo é dizer que se conhecia bem demais, porque nunca tinha dúvidas sobre quem era e era sempre igual a si mesmo. Era um homem reservado e pouco falador, porém um dia tudo isso mudou, e percebeu de repente que não sabia quem era, o que até seria bom, se não percebesse também de repente que nada era e tenha desaparecido nesse vazio. Felizmente, foi salvo pelas palavras que se escreveram nele e o resgataram para a vida. Desde então nunca mais se calou.


7 Escrevo e penso naquilo que se aproveitará do escrevo. A linha que acabei de escrever, devo conservá-la ou eliminá-la? E a que se lhe seguiu? Deixo tudo como está e continuo a escrever. Mais tarde decidirei, não sem antes ter feito ligeiras alterações ao que escrevo.
Um dos erros mais frequentes consiste em apontar os erros ignorando por completo as virtudes de uma ação ou de um resultado. Mas diz-se que todos aprendem com os erros, mesmo com os mais crassos. Por isso deixo que os meus dedos escrevam, coloco neles toda a minha confiança, permito que a escrita avance ao ritmo compassado dos seus negros avanços no branco da página.
Mais tarde atentarei nos defeitos e nas virtudes e se não conseguir eliminar os primeiros tentarei pelo menos que uns e outros se equilibrem.

8 A possibilidade da poesia

existe sem dúvida
alguém que escreve
existe sem dúvida
algo que se escreve
uma palavra à frente da outra
uma frase depois da outra
o escritor diz-se em silêncio
o poema cresce
o escritor hesita
o poema fala
o escritor para
o poema cala-se
o escritor recomeça
 o poema acompanha-o
escritor e poema procuram uma melodia
procuram um ritmo
dançam na folha
encontram-se e desencontram-se
numa perplexa mas feliz dissonância
que invade pouco a pouco
a outrora folha em branco
afirmando de novo a possibilidade da poesia


9 E de repente dou por mim sem saber de onde vim ou para onde vou. Olho para trás e olho para a frente e a mesma sensação permanece. E no entanto, desde que o senti, escrevi duas frases e termino a terceira, avançando na construção deste texto. Acontecerá o mesmo com a vida (e o viver) que avança até quando nada fazemos? A verdade é que tudo se constrói com o fazer, e até o nada fazer é fazer. Faças ou nada faças, estás sempre a fazer, e se eu nada tivesse escrito, este texto nunca te interrogaria.


10 Seja o que for, tudo o que é, para ser, tem de começar, e esta verdade simples aplica-se à escrita. Se eu não tivesse escrito a primeira frase não teria escrito esta que agora termino. E se não continuar a escrever, se parar agora mesmo, este texto ficará por aqui e nada mais será. Quero eu dizer que escrever é apenas colocar uma palavra depois de outra, uma frase a seguir a outra e que tudo começa quando se começa a escrever? A escrita começa sempre antes de se começar a escrever, nesse território onde tem as suas raízes. Mas também é verdade que as palavras têm a necessidade de se agruparem em frases e fazem-no quase naturalmente, basta que as digamos, basta que as escrevamos. Assim, ainda que a escrita comece antes de escrever, ela só se realizará se escrevermos.

11 Escrever é sempre percorrer um território familiar e no entanto desconhecido. Podes pensar que tens um mapa, porém logo perceberás que ele não corresponde ao território que percorres, logo perceberás que é o mapa errado, logo perceberás que és tu que tens de traçar o mapa, logo perceberás que o território que percorres está em constante transformação.


12 A história da sua vida era triste, muito triste, cinzenta, muito cinzenta, precisava escrevê-la com cores mais vivas, mais alegres, decidiu, sério, muito sério. Começou de imediato e logo percebeu que sempre fora um homem triste, muito triste, e que a tristeza da sua vida era um simples reflexo da tristeza que sempre sentira em si. Ficou ainda mais triste, muito mais triste, desesperado, e quis desesperadamente mudar a sua história, e tão desesperado se viu que começou a rir de si mesmo pela primeira vez na sua vida. Riu tanto que chorou de tanto rir, um choro belo e vibrante como um arco-íris. Então sentiu-se quase feliz e escreveu em si mesmo a história do homem que se ria da tristeza, um homem que às vezes se sentia triste, muito triste, mas que nunca deixava de acreditar na felicidade: uma história triste com um choro feliz.


13 O labor do escritor começa sempre que termina uma obra. Começa quando o escritor descansa da obra que terminou.  Nunca se deixa de ser escritor assim como nunca se deixa de ser humano, ainda que às vezes pareça que assim acontece. Faz a última correção, diz em voz alta a última palavra, aquela que nunca escreve no final de cada obra, ainda que nunca volte às obras terminadas. Espreguiça-se, dá o seu trabalho por terminado, e nem se dá conta que começou de novo, talvez nem tenha ainda começado de novo, mas essa possibilidade é tão forte que é já uma certeza. Inspira, expira, faz três respirações profundas e relaxa.


14 Falar e escrever não é muito diferente. Um homem que não soubesse escrever poderia por exemplo ditar para outro ou para um gravador o que tivesse de dizer. Faltar-lhe-ia a capacidade de rever, faltar-lhe-ia talvez a capacidade de organizar da melhor forma o que ditasse.
Quando escrevemos ditamos para nós mesmos, e sei que uns corrigem mais do que outros, e sei ainda que uns acreditam mais do que os outros na necessidade de uma primeira versão. Mas quer se escreva, quer se fale, é sempre com palavras que o fazemos. À escrita falta todo o contexto não verbal em que a fala é pródiga, mas sobram-lhe outros recursos.
O homem não sabia ler nem escrever, mas sentia em si a necessidade de dizer-se, de comunicar, de contar histórias. Por isso cansou-se do silêncio e começou a falar. Depois sentiu saudade do silêncio e começou a escrever.


15 As nossas vidas são feitas de histórias, por outro lado as histórias têm por matéria-prima a vida, ainda que sejam feitas com palavras e que estas possam ser também apontadas como a sua matéria-prima. Talvez pudéssemos dizer que as nossas vidas são feitas de palavras, que somos seres de palavras, pois é com elas que nos dizemos e dizemos o mundo, ou seja, é com elas que contamos as histórias, todas as histórias. Também se pode contar uma história sem palavras, mas essas histórias também se podem escrever, e muitas vezes é o que acontece. Leio que escrever é um exercício de empatia e aceito sem reservas essa afirmação, ainda que nunca tivesse pensado dessa forma. Escrever é um ato de imaginação e a empatia também, é sermos capazes de viver outras vidas, é sermos capazes de nos imaginarmos outros.


16

O escritor invoca um mistério

há muito esquecido

As palavras despertam a poesia

escondida no silêncio

Escurecem a folha em branco

enchendo-a de luz

Os leitores semicerram os olhos

para não cegar

O poema fecha-se sobre si

como uma arca

cheia até acima de tudo

e de nada

Ele não sabe como avançar

falta-lhe a chave

Solta um grito de vitória

aceita a derrota

Mais tarde, depois de descansar

começará de novo


17 Todos os dias, pela manhã, o homem leva a filha à escola. Ela deve ter seis ou sete anos. Sorriem os dois. Passam por mim, eles a subir a rua, eu a descer, ela ao colo dele, ele de mãos enluvadas, impulsionando sem esforço aparente a cadeira de rodas. É um pai como outro qualquer bom pai que se esforça.
Talvez o leitor esteja a pensar se o que leu é ficção ou realidade. Mas o que é que isso interessa, mas que diferença é que isso faz?


18 Talvez escrever não seja apenas colocar uma palavra à frente da outra, um parágrafo à frente do outro, todavia sem este fazer nada se escreveria e, se queremos escrever, é conveniente ir do fácil ao difícil, do óbvio ao subtil, pois é dessa forma que sempre se evolui. Continuarei assim a colocar uma palavra à frente da outra, um parágrafo à frente do outro, ainda uma e outra vez.
Este poema não tem versos, porque é de um poema que se trata, e já que vem ao caso, se acontecer rima, será por mero acaso. E no entanto não tenho dúvidas que escrevo um poema. Porque assim o digo, porque assim o quero, porque assim o desejo. Se é um bom ou um mau poema, bonito ou feio, isso não me interessa, a poesia é um fim e não um meio. Os poemas são sempre poemas ou então não o são, e este não é diferente.


19 Uma longa caminhada começa com um pequeno passo, terá dito Lao-Tsé, enfatizando o impulso inicial; a mim apetece-me dizer que uma longa caminhada é feita de milhares de pequenos passos, enfatizando o processo. Quando escrevo fico sempre maravilhado com a facilidade com que o texto se desenvolve, de forma natural, palavra a palavra, frase a frase, parágrafo a parágrafo, com um ritmo e uma melodia próprias, criando e desenvolvendo padrões singulares. Olhamos muitas vezes para um qualquer todo e esquecemos que ele é a soma das partes, dispostas numa linha temporal que se tornou invisível. E isso acontece porque estamos a maior parte das vezes no aqui e agora. Um romance de quatrocentas páginas é o resultado final de um processo, foi escrito palavra a palavra, frase a frase, parágrafo. Talvez o melhor dos leitores seja aquele que consiga demorar tanto tempo a ler um livro quanto o escritor demorou a escrevê-lo. E que não desesperem os leitores rápidos, porque estou certo que também existem escritores rápidos.


20 Escrever é fácil, difícil é ser lido. Escreveu esta frase e ficou a pensar o que esta frase poderia dizer a quem a lesse. Hesitou se ficaria ou não melhor com um título, qualquer coisa como “o lamento do escritor”, ou “ o lamento satisfeito do escritor”. Ou talvez o título pudesse ter o mesmo número de palavras do texto. O breve lamento do escritor ainda desconhecido. Havia o contraste do fácil com o difícil, um contraste talvez inesperado. E havia o escritor que já era escritor, ainda que desconhecido. Voltou ao início, primeiro o título, depois o texto.
O breve lamento do escritor ainda desconhecido
Escrever é fácil, difícil é ser lido.


21 Nunca mais voltarei aqui, disse, hesitante, e para se convencer ali voltou muitas vezes para de novo o dizer.
Quem é este homem ou esta mulher? Qual é a sua idade? Porque não quer mais voltar ali? Que lugar é ali? Porque não consegue partir de vez?
Não sei nem quero saber! Um texto pergunta sempre mais do que responde. Se eu respondesse a essa perguntas o que ficaria por dizer?


22 Deixa-me contar-te uma história, disse-me ela, e eu dispus-me a escutá-la com atenção, concentrado na magia que espreitava da sua voz, porém, por uns instantes, divaguei e quase fiquei gozando a antecipação do que ela me ia contar. Acontece-me muitas vezes preferir a antecipação de um facto esperado, ou talvez apenas temer que o pior aconteça e o facto esperado nunca chegue a concretizar-se. Muitas vezes hesito, muitas vezes até fujo, tal é o meu costumado sentir, profundo e determinado nas suas raízes. Mas desta vez não hesitei, escutei com atenção a história que ela me tinha para me contar, e vocês também a poderão ouvir se souberem escutá-la, história dentro de uma história dentro doutra história que se oferece à vossa imaginação.


23 Peço um café. O grupo "Queen" faz-se ouvir por todo o lado. Olho à minha volta. As mesas vazias; o alumínio que fecha e abre o pátio ao exterior; o apelo ao 1.º de maio, Dia do Trabalhador que se ergue isolado na encosta à direita, bem acima da vegetação anémica; o cemitério compacto que continua o casario à minha esquerda numa lógica implacável. Penso que nada disto fará qualquer sentido, como um todo, a não ser que o escreva, e é isso que faço, palavra a palavra, frase a frase, num único parágrafo, para aumentar a insondável unidade do mistério .


24 Depois de uma palavra ter sido pronunciada, o silêncio que regressa nunca é o mesmo de antes. O silêncio é dúctil, altera-se com facilidade, contrai-se e expande-se quando tocado pelas palavras, molda-se a elas, cede facilmente aos seus desejos. As palavras sabem da sua docilidade e abusam. Às vezes o silêncio cansa-se e resiste-lhes, mas nunca lhes diz que não.
As palavras transformam-se com facilidade e muitas vezes aquela que parecia ser a mesma palavra já não é afinal a mesma palavra; basta repeti-la, basta juntá-la a outra e a mesma palavra, palavra comum, palavra mágica, já não é a mesma palavra de antes. E o que acontece às palavras acontece também às frases, aos parágrafos e por aí adiante, o todo fluindo e transformando-se como um rio que se tornará mar.


25 Era a primeira vez que escrevia.

Pensou-o e escreveu-o: “É a primeira vez que escrevo.”
Ainda que se acredite na sua afirmação, estou certo que não será a última vez que escreve pela primeira vez. Pelo menos assim o espero, porque acredito que se escreve sempre pela primeira vez.
A primeira vez que comi alcatra, um prato açoriano típico, e declarei que era a melhor comida que alguma vez comera, não foi a primeira vez que comi alcatra. Na verdade, se querem saber, foi a segunda vez.
A primeira vez não é na maior parte vezes a única, existindo grandes possibilidades de repetição e existindo por sua vez muitas possibilidades de novas repetições. O ter existido uma primeira vez que fizemos ou vivemos não significa que não possam existir novas primeiras vezes para a mesma ação ou situação. Quem já não disse, quem não já sentiu, ao fazer algo que já fizera muitas vezes, que aquela era a primeira vez que lhe acontecera daquela forma?
Por tudo isto, quem sou eu para negar alguém, até um escritor, que afirma perentório que escreveu mais uma vez pela primeira vez. Também eu, ainda que assim não seja, quero sentir que escrevo pela primeira vez, quero acreditar que escrevo sempre pela primeira vez.


26 Quando escrevo, contemplo as palavras que utilizo, contemplo o próprio acto e processo de escrita, olho com atenção o que faço e o que é feito. E falo e escrevo sobre isso. Podia calar-me, e a verdade é que me calo muitas vezes, deixando que o texto se escreva, mas estou sempre presente, ainda que em silêncio; e se um texto é feito de palavras ele também é feito de silêncios e quem escreve nunca está fora do que escreve, por muito que se limite a contemplar, porque escrever é sempre contemplar. Escrever é contemplar o mundo e a nós mesmos. A escrita é um espelho que levantamos para ver melhor.


27 Escrevo como vivo, posso dizer que não me é fácil nem difícil fazê-lo, posso dizer que me é tão fácil como me é difícil fazê-lo. Gosto de paradoxos e dedico-lhes muito do meu pensar e da minha escrita; todavia não sei se os paradoxos são expressão própria da realidade ou se existem apenas porque falamos e pensamos.  A verdade é sempre algo e o seu contrário, ainda que em partes desiguais. É claro que nada disto é novo, mas talvez seja a primeira vez que é escrito assim.


28 Porque é que se escreve o que se escreve? De onde surge a necessidade de escrever? Leio um artigo que fala sobre os fantasmas que escrevem os livros dos famosos e escrevo uma pequena história sem título com cento e cinquenta caracteres.
Depois de morrer tornou-se escritor. Quando o facto foi conhecido as pessoas admiraram-se muito, sabe-se lá porquê, que os escritores fantasma existem há muito e estão na moda.


29 O ser nunca o é verdadeiramente, o ser é sempre possibilidade. Posso dizer que um limão é amarelo, mas é claro que ele só é amarelo para mim, enquanto humano possuidor de determinadas características.
Toda a escrita é possibilidade, flui, desenvolve-se e na verdade nunca sabemos para onde vai, apesar de sermos nós quem escreve.
Qual é o som obtido quando se bate palmas com uma só mão? O Koan pergunta e afirma. Não só é possível bater palmas como uma só mão como tal ação produzirá som. Bastará imaginá-lo. Bater palmas com uma só mão soa a derrota, soa a vitória, soa ao que soam as palmas.
O processo de escrever partilha da mesma natureza e do mesmo mistério. Como se escrever sem saber para onde se vai? Escreve-se, escrevendo.


30. Reconheço em mim a necessidade de (voltar a) escrever. Estabeleço um calendário e transformo essa necessidade numa atividade diária. No entanto interrogo-me se ainda corresponderá a uma necessidade. Ou corresponderá agora a uma obrigação? Mas o que são as obrigações que impomos a nós mesmos senão a concretização de necessidades?
Seja como for, decido voltar a ler tudo o que já escrevi antes de continuar a escrever.


31 Por que motivo se interrogava tanto sobre o ato de escrever? Será que não tinha nada para dizer? Será que a escrita nunca se faz em silêncio e ele preferia o silêncio? Será que, ainda que a escrita fosse para ele uma forma de contemplação, ele sentia que o ato de escrever o separava do mundo?
O escritor interrogava-se e escrevia e interrogava-se. Eu faço o mesmo.


32 Feliz é quem avança apoiado na tristeza. O seu olhar é janela de sala de interrogatórios. Nunca se sentirá só, mesmo no meio da multidão. Os seus dias encher-se-ão de luz, mesmo os mais cinzentos e tristes.

Qualquer texto convida sempre o leitor a lê-lo e a interpretá-lo. Este não é em nada diferente. O que quis dizer o autor parece-me menos importante do que aquilo que o texto diz ao leitor. Senti a primeira frase como a mais forte, as que se seguem são suas consequências, talvez seus ecos. Como leitor que agora sou, talvez gostasse que essa primeira frase fosse a última. Vejamos.

Observo-o. O seu olhar é janela de sala de interrogatórios. Nunca se sentirá só, mesmo no meio da multidão. Os seus dias encher-se-ão de luz, mesmo os mais cinzentos e tristes. Feliz é quem avança apoiado na tristeza.

Faz alguma diferença? Sim, faz, mas será essa diferença importante? Reparo em alguma falta de ligação entre as frases e recordo que este texto começou como poema em verso e talvez faça mais sentido dessa forma, ainda que eu prefira escrever em prosa. Vejamos.

O teu olhar é janela

de sala de interrogatórios.

Nunca te sentirás só

mesmo no meio da multidão.

Os teus dias encher-se-ão de luz

mesmo os mais cinzentos e tristes.

Feliz é quem avança apoiado na tristeza
 
*

O leitor é sempre autor, a leitura exige sempre um esforço criador, como tudo na vida. Volto atrás.
 
O seu olhar era janela de sala de interrogatório e, mesmo no meio da multidão, nunca se sentia só. Os seus dias foram cheios de luz, mesmo os mais cinzentos e tristes, porque feliz é quem avança apoiado na tristeza.

Volto atrás, volto atrás, volto atrás. Leio, leio e leio.


33 Um homem existiu, todavia nunca foi. Gostava muito de brincar com as palavras e muitas vezes exagerou. No dia da sua morte ficou sem epitáfio: as palavras resolveram brincar com ele e não compareceram.

Queria ser ele próprio, viver a sua própria vida. Quem assim quiser agir só pode esperar a solidão. Escrever é sempre abrirmo-nos ao mundo e, no entanto, é também um puro ato de solidão, pelo menos se quisermos preservar e desenvolver a nossa própria voz.

Junto dois parágrafos e espero que façam algum sentido. Ambos falam em ser e em escrever, ambos falam em palavras e em solidão. Para o escritor, escrever é sempre afirmar a vida, para o escritor, escrever é sempre confrontar a morte.

Escrevia para manter a morte à distância, o que muito a intrigou. Se por isso morreu mais tarde ou mais cedo, o leitor decidirá.


34 Escrever é estar só e no entanto é também não estar só, porque escrever é comunicar, porque escrever pressupõe sempre um leitor. Escrever é sempre procurar um outro, escrever é sempre aceitar e negar a solidão.
Se me leres, estaremos um com o outro, ainda que por breves instantes. Se me leres, valeu a pena ter escrito.
Escreveu e agora lê o que escreveu. Dá por si multiplicado e sabe que desta forma afastou por momentos a solidão. Diz a si mesmo que valeu a pena escrever.


35 A primeira frase é sempre a mais difícil, porque antes da primeira frase nada existe. Depois é persistir, escrever outra frase, dizê-la e senti-la mais fácil, cada vez mais fácil, sem nunca deixar de ser difícil. O que é preciso é não parar, aproveitar o impulso inicial e prolongá-lo.
Escreve-se escrevendo, verdade fácil porém incontornável, como todas as grandes verdades, todas elas fáceis e incontornáveis. Jogamos as palavras, recolhemo-las, jogamo-las de novo. Não é difícil escrever, basta persistir, ainda que persistir não seja fácil, porque persistir é acreditar, e a dúvida avança a par da certeza.
Ultrapassada a primeira frase escrever é mais fácil; às vezes demora é muito tempo, sobretudo quando se tem de voltar uma e outra vez ao princípio, o que acontece com frequência, porque cada nova frase tem tendência de se comportar como se fosse a primeira.


36 Existe um algo que se escreve, um algo que moldo e se molda com as palavras que escrevo. Um algo que existe antes das palavras mas que só as palavras podem revelar. É esse algo que se escreve, é esse algo que a escrita revela sem nunca capturar. Por isso o escritor deve ter muito cuidado, deve contemplar muito mais do que escrever; deve, mais do que escrever, criar condições para que esse algo se escreva.



37 Escrever

 

Escrevo meia dúzia de palavras.

Silencio-me.

Espero que as palavras regressem.

Escrevo-as.

Fico de novo em silêncio.

Escrevo.

O poema cresce em silêncio.

Escreve-se.

Escrever é perseverar, colocar uma palavra à frente da outra, ler, corrigir, voltar a ler, avançar. Escrever é falhar uma e outra vez. Escrever é fazer tiro ao alvo sem alvo.


38 Lugares-comuns

Porque gosto de utilizar os chamados lugares-comuns?

Um homem descobriu um dia que podia ser feliz, o que foi sem dúvida uma verdadeira lufada de ar fresco na sua vida. Infelizmente, verdade seja dita, constipou-se, caiu à cama e morreu.

Uma pedrada no charco, disse ele, uma verdadeira pedrada no charco. O charco riu-se, riu-se muito, as pedradas faziam-lhe cócegas.

Tinha planeado fechar com chave de ouro, mas confundiu-se quando percebeu que a fechadura era de prata.

Talvez os lugares-comuns já não nos surpreendam, mas nós podemos ainda surpreendê-los e surpreendermo-nos com isso.


39 Uma pequena história
 
Recebeu-a com um sorriso, ofereceu-lhe um excelente vinho branco, disse-lhe poemas, acariciou-a, serviu-lhe ostras, seduziu-a. Ela voltou e voltou e voltou e tinha sempre desejo de voltar. Foi assim que o homem viveu ainda muitos anos, morrendo pouco a pouco, muito pouco a pouco.

Esta pequena história poderia terminar aqui, o que não acontecerá. Existem muitas formas de terminar uma pequena história, de forma abrupta ou subtil, com ou sem guinada, com ou sem moral, e esta tem a sua própria forma.

Direi então, caro leitor, que um dia o homem acabou afinal por morrer de um todo, que a morte pode ser caprichosa mas é sempre implacável.

E assim termino. Seja como fora, o leitor tem sempre a última palavra.


40 O poema

 

Pedes-me que escreva um poema, garantes-me que o colocarás em tua casa, num lugar de destaque. Agarro numa folha e num velho lápis de duas pontas e procuro em vão agradar-te. Dobro a folha ainda em branco e guardo-a no bolso interior do blusão de onde a tinha tirado. O momento está perdido, será preciso começar tudo de novo, a seu tempo o poema aparecerá. E será tão espontâneo e natural quanto o esforço repetido e continuado que será necessário para o escrever.

...

Espera querida, espera só mais um bocadinho

Ainda estou a escrever o poema que me pediste

Escrever um poema é fácil mas leva o seu tempo

Os poemas são esquivos e caprichosos

E só se oferecem a quem se querem dar

Espera querida, espera só mais um bocadinho

Estou quase, quase, quase a terminar.


41 Penso que talvez me devesse interrogar sobre o que é ser escritor, no entanto não tenho qualquer vontade de o fazer. Acho que levei tanto tempo a interrogar-me se era escritor que a interrogação se exauriu. Talvez não saiba o que é ser escritor, mas sei que o sou e isso basta-me.

Li o parágrafo anterior e fiquei com dúvidas. Quero ser honesto, quero ser autêntico, e não sei se o consegui. Talvez seja melhor dizer que ainda não sei se sou escritor, mas que, seja como for, já não me preocupo com isso. Escrevo, escrevo e escrevo. Nada mais.

Já o disse e repito, escrever é persistir, escrever é acreditar na escrita. E quando digo escrita, digo escrita literária.


42 Pedras não sentem alegria nem ciúme, montanhas não amam.

Esta frase, retirada do seu contexto, onde faz todo o sentido, lógico e argumentativo, poderia ser o verso de um poema. A frase exala poesia, exala mistério. É tão óbvia que parece anunciar um mistério, é tão óbvia que parece que diz muito mais do que aparenta dizer.

Experimento aumentá-la.

*

Pedras não sentem alegria nem ciúme, montanhas não amam.

E no entanto tantas vezes somos pedras, tantas vezes somos montanhas.

*

Volto a experimentar, abandonando a frase original.

*

Mas o que seria das pedras se não amassem com todo o seu ser?

Mas o que seria das montanhas se não sentissem alegria e ciúme?

*

Ainda outra vez, começando com uma pergunta e regressando à frase original.

*

O que é o mundo sem o amor? O que é a vida sem alegria e ciúme?

Pedras não sentem alegria nem ciúme, montanhas não amam.

*

Experimento agora  prosa, com uma pequena história, metade poema, metade aforismo.

*

As pedras são seres tristes que aspiram a ser montanhas. O que desconhecem é que as montanhas são pura melancolia.

*

Experimente agora o leitor. Escrever, tal como ler, é persistir, é experimentar todas as possibilidades.


43 Escrever é difícil e alguns autores afirmam até ser um processo particularmente doloroso. Ler é mais fácil, diz-se, é puro prazer. Não sei se estou completamente de acordo. Acho que são diferentes esforços e diferentes prazeres. Talvez ler seja puro prazer, talvez escrever seja puro esforço, quanto a mim, posso dizer que escrevo com esforço, é verdade, mas com alegria.

Ler é pura magia, é maravilharmo-nos com o trabalho do prestidigitador, escrever é criar e preparar o truque de magia. Não me recordo agora de outra comparação, desde ontem que procurava uma e surgiu-me esta agora de repente, como num passe de magia. E ocorre-me que é também esta surpresa, esta magia que tempera o esforço, que me leva a dizer que escrevo com alegria. Poderia dizer que escrevo com prazer, prefiro dizer que escrevo com alegria, a alegria que antecipa o puro prazer que é a leitura.


44 A escrita é uma ponte que nos leva do real à ficção e desta ao real. A escrita é uma ponte que nos leva de nós aos outros e dos outros a nós. A escrita é um bilhete de ida e volta.


45 Reciclagem*

1. Aprenda e domine as técnicas de escrita.
2. Pratique constantemente o que aprendeu.
3. Escreva, escreva, escreva.



* Se querem mesmo saber, peguei em três regras de um manual de persuasão, retirei-as do seu contexto e apliquei-as à escrita, daí o título.


46 Apesar de sempre ter sabido que os poemas, os contos, os romances, toda a literatura, são um produto humano, a verdade é que sempre, e ainda hoje, olho para as obras literárias como se não tivessem autores, como se fossem puros milagres à minha disposição. E sinto assim até com o que escrevo, basta que tenha passado o tempo necessário para me separar do que escrevi.

Talvez sinta assim porque o autor cria a obra mas o leitor sempre a recria, pertencendo a obra tanto a um como a outro e logo a nenhum deles. Talvez sinta assim porque a obra terminada e oferecida ao leitor se separa definitivamente do seu autor, por muito que custe a alguns escritores. Talvez.


47 Escrevo por necessidade, escrevo com dificuldade, escrevo para mim mesmo. E, no entanto, há algo que se escreve, algo que segue as suas próprias regras, algo que está muito para lá de mim. E, no entanto, escreve-se escrevendo, colocando uma palavra à frente da outra, como se isso bastasse, rito vulgar que invoca insondáveis mistérios. Talvez perguntar seja mais importante do que responder, talvez escrever seja apenas perguntar.



48 Escrever é jogar aos dados.

(Não resisto a referir o quanto foi preciso conter-me para não continuar a frase que escrevi e deixá-la assim, completamente nas mãos do leitor. Até esta nota me custou escrever.)


49 JÁ ALGUÉM DEVE TER DITO ISTO

 

Já alguém deve ter dito que é importante brincar com as palavras, brincar com as frases feitas. Faço-o muitas vezes, e não por mero exercício.

*

Somos tão bons a criar regras como a criar exceções à regra.

O que é que apareceu primeiro, a exceção ou a regra?

Subir para cima é tão mau como descer para baixo. E não pensem que estou a exagerar!

Dialogamos cada vez mais como se monologássemos.

Se queres mesmo ser notado tens de começar por esquecer que existem boas e más razões para se ser notado.

Ao amor não interessa se é correspondido ou quanto tempo dura, ao amor basta-lhe existir.

Umas vezes é preciso encher a taça, outras vezes é preciso esvaziá-la. Seja como for, o recipiente é sempre fundamental.

Cala-te com frequência, ouvirás mais.

O homem é um animal de hábitos, pouco importa se bons ou maus.

*

A verdade é que reconheço qualidades próprias a estas pequenas frases ambíguas disfarçadas de verdades afirmativas. É uma brincadeira, é certo, mas para mim é uma brincadeira muito séria. Várias vezes pensei em espalhá-las pelas paredes da cidade, como pequenos despertadores de consciências.


50 Escreve e contempla. Talvez contemple mais do que escreve, talvez a escrita seja pura contemplação. Porque tudo começa no olhar. Olha para o que escreve, olha para si. Está atento. Avança e espera. Espera e avança. Procura uma forma, procura uma emoção. Avança entre o poema e a ficção.

Está certo da sua escrita e no entanto hesita, hesita sempre. É de si que desconfia ou é apenas da sua natureza desconfiar? Teme a escrita, essa é que é a verdade, teme-a tanto quanto a ama. Tem medo de se perder, tem medo de não voltar.

Espera. Avança. Espera e avança, avança e espera. Talvez escrever não seja  salvação, mas não escrever é pior, já muitos escritores o disseram.


51 O caminho II

 

O caminho está à minha frente.

Não existe ainda e no entanto existe já.

Avanço.

O caminho já existe e no entanto ainda não existe.

O caminho está à minha frente.

Avanço.

 

Avanço pela tua mão.

De mãos dadas.

A minha mão na tua mão.

O caminho existe já e no entanto não existe ainda.

Existimos. Eu e tu. Tu e eu.

Avançamos.

 

O caminho está à nossa frente.

Não existe ainda e no entanto existe já.

Continuamos a avançar

De mãos dadas.

Eu e tu. Tu e eu.

A caminho.

 

Avançamos.

Somos o caminho.

De mãos dadas.

Tu e eu. Eu e tu.

Sozinhos. Determinados.

Plenos do mistério de existir.

 
(Este texto foi despoletado pela audição de Almas Perfumadas II, de Fernando Dinis. Não fosse este um lugar de exercícios  e de procuras e nunca o mostraria.
E poderia reajustá-lo constantemente, o que tenho feito de cada vez que a ele voltei.)



52 Escrevo e o corretor automático acompanha-me no ato de escrever, sugerindo sempre várias palavras e algumas vezes tomando ele mesmo a iniciativa de alterar o que escrevo. Interrogou-me mesmo agora, alterando-me o verbo e decido brincar e aceitar as suas sugestões. Vou ver se calhar. Tento de novo mantendo-me fiel à frase original. Vamos verdade, abraço, vou continuar.  Vamos ver se consigo, escrevo desta vez, não aceitando as suas senhas. Exercício diverso. Eclético e sem semelhança. Mergulho no mar alto e a mesma energia positiva do livro é rua, escreve o corretor afirmando a sua poesia. Abraço ao leitor, escrevo aceitando as suas próprias regras.  O que faço é seguir o corretor escolhendo uma das sugestões até completar a frase. Digo-o para não me esquecer, digo-o para que possa ser repetido. E faço-o.

*

Ao preparar as palavras uma pequena história poderia ser. É o amor que afinal era bom.

Estou convencido da fome nas prisões portuguesas e do que eu quiser deixar de acreditar.

Os leitores semicerram os poemas.

O osso faz aquilo que dizem que as palavras gostam de virar.

Muito interessante.  Mas não é o que é.


53 O escritor diz, é verdade, diz muito, mas cala ainda mais do que diz. Não sei o que é mais importante, se o que o escritor diz se o que o escritor cala. Seja como for, estou certo que o escritor tem de aprender a calar-se, tanto ou mais quanto precisa aprender a dizer-se. Por isso me digo, por isso me calo.


54 Escrevo, palavra a palavra, com cuidado. Observo, observo-me, escrevo. Como se seguisse um caminho que eu próprio imagino mas que me leva quase contra a minha vontade. Estou a caminho, como se conduzisse um carro por uma estrada qualquer.

Espero, suspendo a escrita, respiro fundo. Observo, observo-me. Respiro fundo, respiro mesmo fundo, uma e outra vez. Sinto-o e escrevo-o mais uma vez. Tento encontrar a verdade desta mentira que é escrever.

A estrada está à minha frente, é de noite, estou sozinho; para chegar seja onde for tenho de continuar. Posso perder-me, posso não chegar aonde quero, supondo que sei onde quero ir; mas chegarei a um qualquer lugar, esta é a certeza de escrever.

Estou preocupado, combato medos, luto contra a crescente ansiedade, porém tenho a certeza de que a estrada existe e que chegarei a um qualquer lugar, se a seguir; e isto é escrever.

Mas também posso ficar pelo caminho, pode faltar-me o combustível necessário para chegar, ou pelo menos para me reabastecer e continuar. Avanço, corro o risco, confio na minha sorte, confio nas minhas capacidades, deixo-me levar pelas palavras, aproveito as descidas, faço-me leve, persisto, ignoro os sinais de alarme, digo a mim mesmo que vou chegar e, quando dou por mim, contra todas as possibilidades, cheguei ao ponto que me permite parar, que me permite continuar.

Observo-me, sinto-me, digo a mim mesmo que vou ficar por aqui, que depois continuarei a percorrer a estrada. Digo-o, escrevo-o, e fico por aqui. Antes de terminar volto ainda atrás, e revejo o que me aconteceu. A escrita é sempre memória de si mesma.


55 Uma palavra à frente da outra. Um parágrafo a seguir ao outro. Um texto a seguir ao outro.
Assim tenho escrito estas notas, porque de notas se tratam, uma espécie de diário de escrita, onde tenho ensaiado perguntas e respostas, onde tenho mostrado a mim mesmo como escrevo.
São notas de alguém que escreve e se admira com os textos que tece e que se tecem; são notas de alguém que se surpreende por ser capaz de escrever o que escreve. São notas de um artífice fascinado com os resultados da sua ação. São textos repetitivos, são aproximações ao mistério que a escrita é para mim.
Não se admirem se continuar, não se admirem se ficar por aqui.


56 Quando se fala em arte e em poesia a palavra de ordem é invariável: "inútil". Alinhavo algumas palavras sobre o tema e disponho-as em versos. Inútil ou não pouco me interessa.
 
 
A POESIA
 
A poesia é inútil

dizem uns com desprezo

A poesia é inútil

dizem outros com orgulho

Sobre isso nada sei

abomino discussões

Para mim a poesia

é sempre dia feriado



57 Leio um ficheiro antigo (estamos na era digital) e acontece-me algo que gosto que me aconteça, não descobrir de imediato o significado/jogo de algo que escrevi. Aconteceu-me com este texto, parte de um projeto criativo que relacionava imagens com palavras.

AI QUE AIS


Olha com atenção, é de olhos fechados que vês melhor. A realidade expande-se e contrai-se ao bater do teu coração.

Olha sempre as coisas de frente até começares a ver-te. O que está atrás de ti não desaparecerá.


Tudo está entre o céu e a terra, sobretudo tu. A felicidade está aqui, mesmo quando não a vês.

 
58 Posso explicar o que escrevi, mas parece-me não só inútil como até despropositado. O que escrevi deve falar por si mesmo. Quando explico o que escrevi, e está definitivamente escrito, já não o faço como escritor mas como leitor, e como leitor sou um leitor como qualquer outro.


59 A escrita é um espaço de restrições, mas também um espaço de liberdade. São até as próprias restrições que impulsionam a liberdade. Quem escreve sabe muito bem isto, quem está vivo e consciente também.


60 Era uma vez um escritor desconhecido capaz de tudo fazer para ganhar notoriedade. Muito anos passados, permanecia um escritor desconhecido, mas tornara-se um filho da pura consagrado.



61 Quando se diz de um escritor que é consagrado, significa que ele tem o reconhecimento público, que deu provas, o que acontece normalmente no final de um percurso ou mesmo de uma vida. Um escritor desconhecido é o contrário. É apenas uma questão de reconhecimento não de maior ou menor qualidade literária. E hoje em dia, cada vez mais, uma questão de marketing.

Não sou um escritor consagrado, mas sou escritor. E uma vez por outra, quando um leitor, por exemplo, me diz que ofereceu um dos meus livros a várias pessoas por ter gostado tanto dele, sinto que valeu a pena consagrar-me à escrita. Publica-se talvez por ousadia, inconsciência ou vaidade, mas às vezes vale a pena. Os leitores que o digam.



62 História imoral

Era um vez um homem que queria ser lobo e por isso lhe vestiu a pele. Tão bem o fez que  ninguém mais o distinguiu de um, nem mesmo os caçadores que o mataram. Mas quem diz lobo, diz ovelha, que aqui não vem ao caso a diferença.

A moral desta história é que tens de ter cuidado com o que queres parecer, porque é isso que te poderás tornar.

[As primeiras pequenas histórias que escrevi não eram muito diferentes desta e a maior parte tinha uma moral mais ou menos moralista. Nunca publiquei as Mil e uma pequenas histórias em papel existindo apenas a versão digital, o que faz todo o sentido.]



 

63 Fizeram-me muitas perguntas interessantes para as quais não tenho respostas claras. O contexto é a apresentação do livro Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido. Falam-me de interioridade da escrita, de forma poética, interrogam-me sobre o processo de escrita, sobre verdade e imaginação. Hesito. Escrevo de forma diferente consoante o que escrevo, ou seja, uso formas diferentes consoante o que quero dizer. Uma característica comum talvez seja usar sempre o fragmento. De uma novela pronta a ser publicada escolho e copio um fragmento.

 
 
Aquela coisa dos cravos
 

Pararam antes de chegar ao bairro porque ele queria aproximar-se progressivamente, vê-lo do geral para o particular, como ele próprio disse. “Os trabalhos são à escala do bairro, é preciso perceber o bairro no seu conjunto para poder realmente compreender as diversas obras na sua dimensão e no seu diálogo umas com as outras e com o meio envolvente”, diz Nuno Lobo a Artur Falcão. “É um projecto muito interessante”, continua Nuno, “e foi desenvolvido em parceria pela Câmara Municipal e por uma associação local. É um exemplo a seguir, sem dúvida, muito interessante e promissor.” Continuaram a andar. Nuno olhava para a esquerda e para a direita, parava, retomava a marcha, parava de novo. Artur ia atrás dele, tentando acompanhar-lhe a marcha e o olhar. Nuno estava ali para fotografar, era um trabalho, porém a máquina fotográfica com a enorme objectiva continuava encostada ao seu peito e ele parecia ter-se esquecido dela. Entraram no bairro, percorreram ao acaso as suas ruas, cruzaram-se com muitos negros e ciganos.

Em Julho de 2008 aquele mesmo bairro fora palco de violentos confrontos entre as comunidades, africana e cigana, que ali habitam. Os murais que cobrem agora o bairro chegaram depois, fazendo os edifícios falarem de muito mais do que miséria e resignação.

Nuno regressou ao ponto de partida, frenético, olha ora para um ora para outro mural, aproxima-se, afasta-se, fecha um olho, fecha outro, murmura, ignora por completo Artur, e este ignora-o também. Nuno tinha-lhe dito que podia ir com ele, mas que não esperasse que lhe desse muita atenção e, sobretudo, que não o interrompesse enquanto trabalhasse. Nuno pede a Artur que espere ali com o material e regressa ao interior do bairro.

Então isto é que é fotografar, pensa Artur e sorri. Se perguntasse a Nuno o que estava a fazer, de certeza que ele lhe responderia, com surpresa, que estava a fotografar. E quando ele lhe fizesse notar que não a tirar fotografias, Nuno responderia, num tom cortês mas frio, que para tirar fotografias primeiro é preciso pensar e decidir que fotografias se quer tirar. Depois é fácil, acrescentaria com um sorriso irónico, é só tirar as fotografias. Esta é a parte mais fácil, sublinharia, se não percebes isto é porque não percebes nada de fotografia.

Artur ficou a olhar um enorme mural que cobria quase por inteiro a lateral de um dos vários prédios de cinco andares que compõem o bairro, todos eles pintados de um enjoativo amarelo-torrado. Nuno desaparecera da vista e ele observava com atenção o mural que reunia quatro rostos de dois andares de altura cada um. Reconheceu com facilidade um Bob Marley sorridente e um Che Guevara circunspecto, mas estava com dificuldades em identificar os outros dois rostos. Um era um militar, o que era óbvio, pelo boné que ostentava, um rosto que lhe parecia familiar, e o outro era um negro sorridente como um boné com a pala para trás. Um negro e um branco na fila de cima, um branco e um negro na fila de baixo. Ambos os negros sorriem, os brancos estão circunspectos, o militar parece quase zangado.

Nuno regressou e encontrou Artur a olhar o mural com um ar intrigado. Colocou-se ao seu lado e ficou também a olhar.

- Podia chamar-se os quatro magníficos, não achas? - perguntou Nuno.

- Podia até concordar, mas só reconheço os dois de cima, ainda que o do lado esquerdo, em baixo, me pareça bastante familiar.

Nuno ri á gargalhada e parece mais calmo do que antes.

- Que falta de cultura – diz sem deixar de rir, quase se engasgando. – Este mural é da autoria de Mendivan Blackboy, também conhecido como Ivanildo Mendes, um writer da Portela. – diz com um ar de entendido que usa com frequência quando quer surpreender e impressionar os amigos. – Em cima, lado a lado, estão o Bob Marley e o Che Guevara, como dever ter percebido. Em baixo, e vou começar pelo lado esquerdo, está um dos maiores rappers de todos os tempos, um verdadeiro ícone, assassinado em 1996.

Aqui chegado Nuno fez uma pausa e olhou para Artur, como que á espera que ele dissesse alguma coisa.

- És mesmo um daqueles gajos da televisão – disse Artur – que só parecem inteligentes quando estão a ler o teleponto. - Decoraste todo o conteúdo das notas que te deram, não foi, grande parvalhão?

Nuno olhou para Artur, divertido, parecendo disposto a esticar o momento ao máximo.

- Nem parece teu, então tu não reconheces o rosto da direita. Então não se vê logo que é um capitão de Abril?

- Porra, um capitão de Abril? – interrompeu Artur sem deixar de olhar para o mural. – Mas o que é isso?

- O 25 de Abril, a revolução, 74!

- O quê? – respondeu Artur quase a desmanchar-se de riso.

- Caralho, Artur, aquela coisa dos cravos, estás a ver ó pazinho! – e riem os dois à gargalhada, até que Artur fica muito sério, o rosto contraído num esgar.

- Porra, foda-se, é o cabrão do Salgueiro Maia!

Riem-se de novo e ficam a olhar o mural em silêncio.

Nuno arma o tripé e prepara-se para começar a tirar as fotografias que imaginou. É o que faz na meia hora, sempre frenético, de um lado para o outro, ignorando Artur. Esqueceu-se de acrescentar, o que fará mais tarde, que o Salgueiro Maia foi uma proposta da organização ao autor, para substituir Amílcar Cabral, dada a exigência de não serem incluídas figuras partidárias.



64 Viajo num autocarro.

Escrevo esta frase e penso, não no que digo, mas no que ela diz ao leitor, ou no que o leitor pode retirar dela. O leitor sabe o que é um autocarro, já viajou num, pode imaginá-lo com facilidade. Não lhe interessa se o que digo é ficção ou realidade, ele tem de acreditar.

O autocarro está cheio de pessoas que falam línguas diferentes.

Que pessoas são essas, pergunta-se o leitor. Confronta a sua experiência com o que escrevi e mais uma vez acredita. Pode ser ficção ou pode ser real, mas de certeza que é verdade.

Alheio-me da paisagem, Viajo neste texto que construo. O autocarro para e eu paro de escrever.

A ficção é este jogo  de escondidas, escrevo ainda, a terminar.




65 Falamos sobre literatura, edição, escritores… e concordamos, apesar de falarmos em línguas diferentes ou talvez por causa disso.

Pode hoje discutir-se a qualidade literária de um livro sem se discutir o marketing que o rodeia? Claro que se pode, mas sem edição (mesmo que digital) não se pode ser lido. E com a edição e a divulgação surgem muitas questões.

Que formato deve ter o livro? Como deve ser a capa? Qual o seu aspeto gráfico? Serão questões menores? Talvez, mas não para quem olhe para o livro como um objeto que merece todo o nosso carinho e atenção.

E há todo o marketing ligado ao autor e ao livro, que compete também ao editor desenvolver, a um editor que seja sensível a todas estas questões e nelas investisse com amor e sabedoria.

Fico por aqui, tenho de continuar a procurar esse editor.




66 Digo que não sou poeta mas acredito que a minha escrita atual é, muitas vezes, mesmo quando não se apresenta, como poema, ainda que em prosa, uma escrita poética. A verdade é que não estou certo que tenha encontrado uma voz na poesia, ao contrário da ficção, onde estou quase certo ter uma voz própria. E escrevo poemas, sim, só não os levo muito a sério.

 

TRÍPTICO

 

1.

Aprisionado no movimento convulsivo

das circunstâncias,

o pintor liberta-se em puros instantes

de eternidade.

Não procura um sentido, é ele próprio

o sentido, único, proibido, aberto

a todas as especulações.

A mão que sangra, a mão que vence,

é a mesma mão que pinta,

mão negra, nostálgica,

mão que não lhe pertence,

mão que sente o que eu agora sinto.

 

2.

O êxtase do pintor assemelha-se

ao do futebolista:

movimenta-se como se dançasse,

procurando a glória do momento;

mas enquanto o pintor o faz sozinho e em silêncio,

o futebolista tem sempre um público barulhento

que celebra os seus fracassos e sucessos,

fintando com ele, caindo com ele,

chutando com ele, marcando e

celebrando os seus golos.

O pintor é uma ação

que procura um resultado,

o futebolista é ele próprio

ação e resultado.

Juntar o improvável, conceber e ser concebido,

ser o caçador e a sua presa, essa é a forma

do pintor pensar e agir e criar.

Não estranhem assim que o esboço de um jogador de futebol,

os braços erguidos em triunfo, termine de repente

numa opulenta cauda de sereia.

Não se admirem que a sua pintura

não se contenha nas superfícies em que se oferece

ao olhar

e se revele afinal na nudez exposta das nossas almas.

 

3.

Executados os últimos retoques

o pintor dedica-se ainda

a uma terna e cuidadosa

limpeza final da obra,

bem sabendo que tal

tarefa é completamente

inútil:

toda a arte é um silêncio

sujo.

 

[de um conjunto de poemas com o titulo:  O PINTOR E O POETA ENCONTRAM-SE NO BRANCO DA FOLHA]




67 Compro um livro de uma poetisa sevilhana. Antes, pergunto à empregada quanto custa e se é bom. Diz-me o preço, depois de consultar um catálogo, e acrescenta com um tom que não identifico e um sorriso enigmático, “É uma poetisa feminista!”




 Era um poeta
           cansado de ser
macho
          de ser sempre
masculino
           mesmo quando se sentia
completamente
          feminino

Um dia disseram-lhe
           com escárnio
que era um poeta feminista

e ele riu-se

uma mão a acariciar os longos cabelos

outra agarrando ostensivamente

os genitais



 

68 “A minha voz tem dois lados”, livro não publicado, poderia ser classificado, como fez Ana Cristina César com alguns dos seus livros, de prosa/poesia. O próprio titulo refere-se a essa dualidade de uma escrita sucinta que avança, digamos assim, entre a poesia e a prosa. Em maré de revisitar o que escrevi, recupero para aqui dois desses textos.


HANDICAP


Ofereci-lhe um dedo de prosa, recusou indignado. Lancei-lhe um dedo de poesia, entrou-lhe por um ouvido, saiu-lhe por outro. E assim desperdicei dois dedos de conversa.


POEMA

 


O poema é chão


que piso


é rampa de lançamento


epitáfio


permite-me voar


permite-me descansar

em paz

permite-me morrer

e continuar vivo






 


69 Recupero algumas notas dispersas, em verso, que de outro modo seriam esquecidas, e chamo-as para este diário esquisito. Corto-as e recorto-as ainda mais uma vez.


 


Escrevo uma palavra


uma frase um verso


Interrompo-me e prossigo


Esforço-me por gerir os ritmos


os silêncios


Interrompo-me e prossigo


 

 

Inspiro Expiro

O lápis sussurra

no branco da folha

sulcando com suavidade

o áspero mistério da poesia

 

Encosto o ouvido

ao branco da folha

Escuto Escuto-me

uma e outra vez

Para escrever é necessário

saber ouvir

 

Um gesto uma palavra
uma inquietação um êxtase
e o poema desabrocha
como uma pequena flor
que logo guardarás

nas páginas de um livro

para que seque

e se conserve
nas páginas de um livro
para que seque
e se conserve
 
 
70 O ofício de escrever não se distingue do ofício de viver (na expressão de Pavese) e na escola da vida, como citou Jorge Amado, referindo-se a uma inscrição num camião, não há férias.

Pequenas frases como a que inicia o parágrafo anterior assaltam-me constantemente. Recolho-as e alimento-as, para que procriem. Poderia chamá-las aforismos ou novos aforismos, apetece-me chamar-lhes nadismos.

Não há escritores menores, há apenas escritores baixos.

Não acreditas em ti porque existes, a verdade é que existes porque acreditas em ti.
Não sabermos quem somos é sermos. Ser é sempre estar à procura.

O mais importante é quase invisível. Podes pressenti-lo mas não podes vê-lo.

O sonho e a realidade não se confundem, misturam-se.

Ser ridículo é inevitável quando se é humano, mas mais vale ser do que parecer.

Sou como sou, o que quer que isso seja.

Mais que uma intenção, existe um apelo a que respondo/correspondo.

 

71 O tom destas notas é reflexivo. Aqui e ali apetece-me colocar um texto sem mais, textos que escapam a esse tom, e que aqui têm aparecido como exemplos ou ilustrações, mas não o tenho feito. Preparado para incluir sem mais um poema, não resisto a juntar estas palavras que agora escrevo e que bem dispensavam o poema que fica para o final. 

Um autor tenta explicar o seu processo criativo e a certa altura usa o quem, como, onde, quando e porquê para o tornar explícito, porém, quando o questionam sobre aspetos particulares desse processo, ele hesita, procura respostas, diz que não sabe, diz que depende, ri.

Desconfio de autores que explicam sem hesitações o seu processo criativo, desconfio de autores que não refletem sobre o seu processo criativo.

 

O PROCESSO

 

Dia após dia Noite após noite

há um sorriso que continua a intrigar-me

A iluminar-me A cegar-me A alegrar-me

 

E depois existem as palavras

que apenas servem para apontar

o dedo ao mistério

 

Palavras que me intrigam Que me cegam

Que me iluminam Que me alegram

Palavras que tudo e nada dizem

 

Palavras que  sorriem um sorriso único

O mesmo sorriso que não pára

Dia após dia Noite após noite

 

de me intrigar de me interrogar

de me gritar em silêncio

o que as palavras calam



72 Pergunto-me qual é a importância que a poesia tem na região algarvia depois de ler essa afirmação como justificação ligeira de um encontro de poesia aqui realizado. E também se dizia sem mais que é importante ouvir os poetas e eu interrogo-me porquê.

Uma das formas possíveis de abordar a questão talvez seja perguntar se é importante o que se vê das palavras dos poetas, no caso em concreto, se é importante para nós o Algarve visto pelos poetas, visto nas suas palavras. Responderia que sim e que é, desde logo, uma questão de identidade. Pense-se no longo poema O Meu Algarve, de João Lúcio.

Pergunto-me até que importância tem a poesia em Portugal, que valor tem como definição da identidade nacional. Pergunto-me mas não respondo, pelo menos por agora. Portugal foi sempre uma questão primeira para os poetas e também para os ficcionistas e julgo que continua a sê-lo.

Diz Alexandre O’Neill, de forma expressiva, “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo”.

Digo eu, no que classifiquei como poema didático, a linhas tantas, “Os portugueses são tristes, são tristes e são poetas. Por isso é que em Portugal tantos poetas são tristes e tantos tristes são poetas.”



73 De entre tudo o que escrevi e não publiquei (em muitos casos nem mesmo em blogues, meio de edição que uso com frequência) percorro alguns livros (ou projetos de livros) a que voltei várias vezes e que arrumei finalmente num único ficheiro, no que foi uma forma de organizar o que escrevi para poder seguir em frente e continuar a escrever.

Constato que a minha produção literária avançou nos últimos anos entre a prosa e a poesia, apresentando-se ao mesmo tempo cada vez mais fragmentária e eclética. E isso é muito mais visível no conjunto de livros não publicados, desde logo porque tenho publicado muito pouco.

É difícil datar estes livros porque a eles voltei muitas vezes, alterando-os, juntando-os, dando-lhes novos nomes e estruturas. Mas não será difícil viajar neles de forma cronológica ou quase. Como a reflexão sobre a escrita é um dos meus temas recorrentes, sobretudo aqui, esse será o fio condutor.

Começo por uma versão alargada de um livro publicado, com dois novos livros, o que faz do conjunto um novo livro. Procuro então um texto (decidi mesmo agora que de cada livro apenas escolherei um texto) e começo a viagem.

*

Um belo dia, decidiu escrever a história da sua vida. Sentou-se em frente ao monitor, olhou por um momento o dia lá fora, e começou a escrever tudo o que recordava, por ordem cronológica, desde o nascimento, primeiro acontecimento inscrito no rol, sem prejuízo de um breve mas necessário recuo genealógico. Nos cinco anos seguintes, reconstituiu exaustiva e minuciosamente a sua existência até ao dia em que começara a descrevê-la. Quando terminou, leu, duas vezes, as seiscentas e trinta e quatro páginas impressas a dois espaços, e achou o texto incompleto, os cinco anos que levara a escrevê-lo não estavam lá e, o que era pior, não terminava verdadeiramente, não tinha fim. Saiu de casa e deu um longo passeio pensativo ao longo da via rápida, até que foi assaltado pela ideia de que os últimos cinco anos eram o próprio livro, o livro incluía esse tempo de escrita em si mesmo, a descrição da sua vida estava completa, até aquele momento. Sorriu e precipitou-se para o fim, servido ali mesmo na faixa de rodagem por um veículo longo como a morte.

*

Escolhi este texto, hesito, mantenho-o. Textos como este, que eu considerava pequenas histórias, podem facilmente ser classificados, e foram-no, como poemas, em prosa, pela sua concisão e ritmo. Avanço e abro outro livro.

*

A morte não é desculpa

Escrevo-te. Telefono-te. Nunca respondes. Sei que estás morto, mas a morte não é desculpa.

*

De um livro com o subtítulo “ a ficção ao microscópio”, que contém três livros retirei este texto que fala da morte e não da escrita, continuando o primeiro texto apresentado mas afastando-me do meu propósito inicial de escolher textos que falassem do ato de escrever. Microficção, classifico, com o que de ambíguo tem a expressão. Continuo.

*

Perguntavas-me o que faz de alguém um escritor. Bastará ser publicado? É preciso ser reconhecido pela crítica? Vender muitos livros?

Eu dizia-te que não era nada disso, que era algo pessoal, íntimo, mas a verdade é que eu ainda não tinha respondido a essa pergunta.

*

Texto breve, fragmentário, abre uma novela em que se mistura prosa e poesia e que usa e abusa do fragmento. Procuro agora num livro de poesia, ou de prosa/poesia.

*

POEMA UM DIA

 

a minha história é uma história

de fracassos

ostento-os todos um a um

alinhados no meu peito

aberto

eles são a prova provada

da minha persistência

da minha coragem

da minha teimosia

ser herói não é ser vencedor

ter sempre os olhos postos

na vitória

ser herói é não aceitar

a derrota

sabendo que nunca

se vencerá

termos os olhos postos

em nós

e vermos os outros

termos os olhos postos

nos  outros

e vermo-nos a nós

ser herói é apenas

sermos homens e mulheres

simples

deuses caídos em desgraça

e aceitarmos

o nosso trágico destino

com um sorriso pleno

de revolta

 

[um poema escrito em poucos minutos e em poucos minutos reescrito foi vivido muitos anos, e um dia arrancado de repente ao todo indistinto a que chamamos memória. por isso os poemas dizem tanto mais quanto mais calam]

*

Não me detenho e visito outro livro, sem me interrogar se contém prosa ou poesia.

*

Está tudo no olhar

 

Está tudo no olhar. Até os cegos olham. Está tudo no ver. Até nas trevas nos conseguimos ver. No princípio é sempre o olhar, nada mais do que o olhar, o ver vem depois, vem sempre depois, depois do olhar e antes do fazer, ou não fazer. O poema pode ser cego mas tem sempre os teus olhos. O poema pode ser obscuro mas nunca é invisível. Está tudo no olhar, não estás a ver? Estás? Então olha!

*

Fico a pensar se me detenho aqui. Já mostrei o que queria mostrar-te e julgo que poderás concordar com as minhas declarações iniciais. Não quero maçar-te, sei que tens mais que fazer, mas vou terminar com mais um fragmento, de uma outra novela, a mais nova.

*

Escrever é viver entre parênteses

 

Terminada a primeira versão, esforça-se agora em limar as arestas, ou afiá-las, consoante os casos e a perspetiva. Esforça-se sobretudo para ouvir a história, para deixar que a história se conte, como a ideia de que a pedra contém em si a escultura que o artista revela. Faz pequenos acertos, pequenos cortes, esforça-se por encontrar um equilíbrio, esforça-se por revelar a verdade. A maior parte do tempo fica imóvel, em silêncio, escutando, escrevendo. Nunca afirmaria que escrever é viver entre parênteses. Escrever é viver, apenas isso, nada mais.

*
Até à próxima.





 

74 Retorno ao conjunto de livros não publicados antes referido e tento seguir o amor como fio condutor. Muitas pessoas que me leem dizem que tenho no mínimo uma estranha conceção de amor. De cada livro volto a escolher apenas um texto.

*

Felizes para sempre

 

Casaram-se e foram felizes para sempre, o que só foi possível graças ao divórcio.

*

E vai um.

*

97 Ele gritou que a amava, mas ela não o ouviu. Quando fazia amor concentrava-se por completo e nada mais existia para ela a não ser o amor que fazia. Ele de novo afirmou que a amava, agora num sussurro, os corpos saciados estendidos lado a lado, mas ela ignorou-o. Se havia coisa que ela nunca fazia era falar de amor.

*

Procuro de novo, quase ao acaso.

*

Olho a mulher jovem e esbelta sentada junto a uma das saídas do café e ela sorri-me. Sorrio também e ela levanta-se e vem sentar-se à minha mesa.

Não sei o que dizer, mas também não interessa, porque ela se mantém em silêncio, sorrindo sempre.

Esfrego os olhos por um momento e quando olho de novo ela já não está ali, nem na minha mesa nem na mesa que antes ocupava.

Não me espanto nem me lamento, olho de novo para a mesa onde ela estava e de novo a imagino, jovem e esbelta, sorrindo para mim.

*

Continuo.

*

ARRITMIA

 

a minha mão na tua mão

os meus lábios nos teus lábios

o meu sexo no teu sexo

amamos sem nos amarmos

completamente surdos

ao bater dos nossos corações

completamente perdidos

na procura desesperada

do amor

*

Apetece-me já parar, mas procuro ainda um último texto.

*

[…]

 

“Gostaste da fotografia?”

“Gostei bastante. Vou usá-la. O artigo deve ser publicado amanhã. Depois envio-te. Sabes que ele é escritor?”

“Sabia que era um artista.”

“Um artista como tu?”

Nunca era ela que lhe telefonava, era sempre Henrique, no entanto ele achava que ela gostava dele, e continuava a insistir sem saber bem porquê, nem o que sentia por ela. Era uma mulher estranha, pensava Henrique, mas Henrique achava todas as mulheres estranhas, assim como todos os homens. E as piores são aquelas com nome de flor, costumava-lhe dizer, e Rosa sorria e chamava-lhe tolo. Já não eram crianças, na verdade tinham já ultrapassado os quarenta anos, tinham filhos e mantinham casamentos e empregos de que não gostavam por aí além, mas que estavam longe de detestar. Rosa fotografava, para si, como dizia, e era o modelo da maior parte das suas fotografias, acusavam-na de ser narcisista, de produzir fotografias ingénuas e sensaboronas.

“O que queres dizer com um artista como eu?”

“Sabes que se diz que só um maluco conhece outro maluco!”

Rosa sorriu. Já estavam a olhar para ela. Não podia atender o telefone na sala de trabalho que ficavam logo a olhar para ela.

“Ele é escritor, chama-se Ângelo Durão, ganhou um prémio importante com o seu primeiro romance e, agora que o romance foi publicado, exige que todos os exemplares sejam retirados do mercado.”

“Interessante. E em que é que o achas parecido comigo?”

Henrique riu. Ia a subir a Avenida onde ficava a sede do jornal onde trabalhava há vários anos. Gostava de telefonar-lhe quando ia a andar na rua, talvez porque ninguém o interrompesse nessa situação, talvez porque gostasse de andar e falar: às vezes até o fazia sozinho.

“Parece ser um homem determinado, este Ângelo Durão, mais preocupado em fazer a sua arte do que em divulgá-la. Disseram-me que não foi ele a enviar o romance a concurso, mas uma amiga, ou uma namorada; se assim não fosse nunca teria concorrido.”

“Começo a gostar dele, mas senti isso tudo quando tirei a fotografia, foi como fotografar-me a mim mesma.”

Rosa dizia sempre que se fotografava a si mesma porque era o único modelo que tinha à sua disposição. Era tímida, nunca quereria incomodar outra pessoa pedindo-lhe que posasse, e as suas fotografias exigiam uma certa imobilidade.

Henrique discordava, dizia que o motivo devia ser outro, ainda que não perdesse tempo a procurá-lo, parecia-lhe inútil. A força das fotografias de Rosa estava nessa exposição de si própria e numa intensa e ambígua intimidade que assim conseguia. Ela estava inteira nas suas fotografias, ou pelo menos parecia estar. O que Henrique não concordava é que ela se preocupasse tão pouco com mostrar o seu trabalho, que fotografasse praticamente só para si. Mas tinha já desistido.

“É maluco como tu.”

Ela riu e ele repetiu a frase.

“É maluco como tu!”

Havia tanto nela que não compreendia, pensou Henrique, e talvez por isso ela lhe interessasse tanto, tal como este Ângelo Durão.

“E como se chama o livro?”

“O livro? Qual o livro? Ah, o livro do Ângelo Durão. Uma pergunta desnecessária.”

            “O quê?”

            “Uma pergunta desnecessária, o livro chama-se Uma pergunta desnecessária.”

            “Ah! Um óptimo título. Já leste?”

            “Não, ainda não li, nem sei se vou ler, interessa-me mais o escritor do que o seu livro.”

            “Não sabes que a obra é sempre mais importante que o seu autor?”

            “Estás a ver, isso era o tipo de coisa que eu acho que o Ângelo Durão diria.”

            Rosa riu-se de novo. Henrique fazia-a rir, fazia-a sempre rir. Às vezes interrogava-se se não seria por isso que gostava tanto dele. E no entanto.

            “Tens o livro?”

            “Sim, tenho… Sabes o que podias fazer? Lias o livro e depois dizias-me alguma coisa. Olha, estou a chegar, depois falamos. Vou fazer chegar-te o livro o mais rápido possível. Adorei a fotografia.”

            Desligou o telefone e só depois murmurou: “Adoro-te.”

            Rosa sorria ainda, como se o ouvisse.

*

Este conjunto de textos fará algum sentido quanto a uma ideia de amor?


75 Não existem bons e maus escritores, existem apenas escritores que sabem esconder na perfeição os seus erros e os outros, que não sabem fazê-lo tão bem. E, claro, existem também aqueles que não são escritores, ainda que digam sê-lo.



76 Desconfio dos escritores que não leem porque estão demasiado ocupados a escrever e/ou porque nada existe que valha a pena ler para além do que escrevem. Desconfio destes escritores, já o disse, desconfio que não sejam escritores.



77 Com o titulo de bons e maus escritores, encontro textos de que já não me recordava. Escolho alguns…

 

Confissão

 

O bom escritor nunca escreve mal, disse ele, e eu respondi-lhe que o bom escritor é aquele que escreve bem, mesmo quando escreve mal.

É óbvio que eu me estava nas tintas para aquela conversa sobre bons e maus escritores. E ele também.

 

Ditado

Um homem, por mais que se esforçasse, só escrevia maus poemas. És um mau poeta, diziam-lhe repetidamente, devias deixar de escrever, mas ele estava-se nas tintas. Amava demasiado a poesia para não lhe dirigir a palavra.

Antes mau poeta que má pessoa.

 

Talvez a única verdadeira diferença

entre um bom e um mau escritor

seja que o primeiro

deve ser lido

e o segundo

evitado.

 

Mas não é igualmente verdade

que aprendemos

sobretudo

com os erros

e que tudo o que é belo

está sempre

completamente

errado?

 

Escrever

Talvez já tenha escrito isto alguma vez, inquietava-se ele de cada vez que escrevia algo novo; e talvez fosse essa inquietação que conseguia transmitir à sua escrita que dava brilho a tudo o que escrevia.



78 De um conjunto de EXERCÍCIOS…

 
Escolha uma folha em branco, uma qualquer, não importa o tamanho ou a cor, desde que esteja em branco, completamente em branco. É indispensável que não tenha nada escrito. Olhe-a todos os dias, ao acordar e ao deitar, durante alguns minutos, encoste-a ao ouvido e escute tudo o que ela tiver para dizer. No total a operação não deverá exceder os vinte minutos, podendo no entanto alternar entre olhar e escutar a folha. Use sempre a mesma folha. Qualquer tipo de envolvimento emocional é completamente desaconselhável. Tem sucedido em alguns casos a perda da vontade de ler nas primeiras semanas.



79 De um pequeno livro publicado na Minguante de que já não tinha memória, O Peso da Leveza…

 

Desde muito novo que sentia um irresistível apelo em nomear tudo o que existia dentro e fora de si.

Escrevia sem parar, em verso e em prosa, juntando as palavras em todas as suas combinações, tentando conferir-lhes novas significações e estabelecer novas harmonias; cortando e recortando sempre com afinco, na esperança de ao peso do mundo e da vida, contrapor a leveza dos textos que escrevia e em que misturava sabiamente uma melancolia profunda e um humor desregrado.

Um dia, finalmente, deixou de escrever, e passou o resto dos seus dias em silêncio, com um sorriso a flutuar-lhe no rosto.



80 Estar concentrado (ou focado) é importante, sobretudo quando se cria. E estar concentrado não é só evitar distrações mas também, paradoxalmente, estar aberto a todas as possibilidades. Escrever é escolher, logo limitação, restrição, mas também é estar aberto a todas as escolhas, logo um estado de liberdade.

Escrever menos é escrever mais, desde que não se escreva mais do mesmo.

 


 

 





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